PALLADIO

sexta-feira, setembro 29, 2006

O Lugar.

Este é um texto tirado de uma conferência do Vittorio Gregotti na New York Architectural League em 1983:

[... O pior inimigo da arquitetura moderna é o espaço considerado exclusivamente em termos de suas exigências técnicas e financeiras, indiferentes à idéia de lugar.
Segundo acreditamos, o ambiente construído que nos cerca é a representação física de sua história e o modo como acomodou diferentes níveis de significado para formar a qualidade específica do lugar..... Na verdade, através do conceito de lugar..... o ambiente tornar-se-ia a essência da produção arquitetônica. A partir deste ponto de observação, é possível vislumbrar novos princípios e métodos para o projeto. Princípios e métodos que dão preferência a sua localização em uma área específica. Este é um ato de conhecimento do contexto que decorre de sua transformação arquitetônica. A origem da arquitetura não é a cabana primitiva, a caverna ou a mítica “casa de Adão no Paraíso”.
Antes de transformar um suporte numa coluna e um telhado num tímpano, antes de colocar pedra sobre pedra, o homem colocou uma pedra no chão com a finalidade de identificar um lugar no meio de um universo desconhecido, para que assim pudesse conhecê-lo bem e modificá-lo.... ]

O que Gregotti quer dizer-nos é que o homem está continuamente modificando tanto a paisagem rural quanto a dos assentamentos urbanos, para sua sobrevivência e crescimento. Assim, toda e qualquer paisagem tem uma história de como e porque foi modificada no tempo, sendo que o homem, ao ocupar o solo (para a agricultura, o pastoreio, a construção do seu abrigo, suas aldeias e cidades), projeta nele não apenas a sua racionalidade, mas também os seus arquétipos, os seus símbolos e a sua visão do cosmos. O lugar não é “inventado pelo edifício”, como afirma Peter Einsenman, mas formado por seu espírito (Genius Loci) que compreende, além do meio físico, sua memória e seus mitos, as relações sociais que nele ocorrem, os ritos e costumes de quem o freqüenta, etc..

Ao observarmos o espaço público como um lugar onde acontecem relações sociais entre indivíduos, verificamos que este deve ter características (com continuidade no tempo) que gerem referências que o identifiquem física e emocionalmente perante a comunidade, criando com ela uma ligação afetiva que favoreça a coexistência indispensável para a comunicação entre seus membros. Cabe aqui diferenciarmos a qualidade urbana de um espaço público, da qualidade arquitetônica dos edifícios que o conformam: podemos perfeitamente, por exemplo, termos uma rua com sua caixa admiravelmente bem proporcionada, adequadamente arborizada para o nosso clima, dotada de pontos de encontro interessantes como cafés, livrarias, uma esquina singular aqui e ali, etc., ladeada por prédios de péssima arquitetura. Aliás, todos nós temos os lugares urbanos de nossa predileção; experimentem enumerá-los e verificar o porquê das suas ligações com eles; estas, certamente, estarão relacionadas não apenas às suas qualidades físicas, mas também à memória, aos aspectos afetivos e emocionais. São estes os espaços que, por suas qualidades urbanas e significados históricos referenciais para a população, formam a base da coexistência social entre indivíduos diferentes entre si, coexistência esta que forja os fundamentos de uma comunidade democrática, aberta e, futuramente (esperemos), mais solidária. Precisamos (e muito) destes lugares, livres da ditadura do consumo e do mercado, espaços apenas para nos encontrarmos, passearmos, conversarmos, pensarmos, sonharmos.

Já quanto ao "ambiente tornar-se a essência da produção arquitetônica", esta é uma antiga postulação dos arquitetos brasileiros; desde os primórdios da escola "Carioca", estes tratavam da adaptação de seus edifícios ao nosso clima tropical, à nossa cultura e à vizinhança do local onde seriam implantados ( ao lugar, portanto).

Euclides Oliveira.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Arquitetura Seletiva.

O arquiteto Paul Rudolph, da velha guarda norte-americana, fez, há algum tempo, a seguinte observação sobre a arquitetura do século passado: [... Não se pode resolver todos os problemas da arquitetura simultâneamente... É uma característica do século XX o fato de que os arquitetos são altamente seletivos ao determinar quais são os problemas que querem resolver. Mies (van Der Rohe), por exemplo, fez edifícios maravilhosos por que ignorou muitos aspectos do uso de um edifício. Se ele resolvesse mais problemas, sua arquitetura seria muito menos potente... ]

Paul Rudolph tem razão (devia estar pensando no edifício Seagram ou na casa Farnsworth); em Mies, insolação, conforto térmico, privacidade não são resolvidos - mas a lista de arquitetos que assim agem ou agiram é imensa: Philip Jhonson, Gordon Bunshaft, Craig Elwood, os Populistas em geral , L.C. , Oscar Niemeyer, Tadao Ando, Richard Meyer, Jean Nouvel, os imitadores de Mies do International Style, etc.. Outro aspecto que nos chama a atenção nas contruções de muitos mestres é a temporalidade dos edifícios, existe uma maneira ou um descaso de fazer-se um tipo de arquitetura que não assimila o tempo, não envelhece bem; são feitos, como nota Kenneth Frampton, para serem fotografados quando concluídos e ainda não utilizados, para depois desaparecerem na história.

Seria então um fator determinante da boa arquitetura este sacrifício deliberado de alguns aspectos funcionais ou construtivos das edificações que criassem obstáculos à tipologia tectônica pretendida? Acho que não, creio que é possível uma arquitetura livre da especulação imobiliária e do mercado, que se relacione bem com a paisagem urbana, o clima e a tradição construtiva local, adequada ao que pretende ser, "modesta", ligada à vida real; e enfrentar a realidade é, seguramente, uma maneira de se escapar do formalismo barato e do monumentalismo de opereta.

O real também é o uso das tecnologias disponíveis, a serem escolhidas com discernimento e sabedoria... Aqui nunca é demais repetir um texto de Gaetano Pesce sobre o assunto, publicado na Domus 768:

[... quando irão os arquitetos convencer-se de que a superação autêntica do Movimento Moderno ocorrerá não apenas através da identificação de novas linguagens arquitetônicas, mas também com a ocorrência de novas tecnologias e o uso de novos materiais de construção? Mas de que maneira isto acontecerá? Por enquanto, certamente não com técnicas que exijam mão de obra sofisticada. No mundo atual a maioria dos trabalhadores não é especializada, mas estes tem o direito de procurar os meios necessários a sua sobrevivência, em troca de sua força de trabalho pouco treinada. Nesta situação, cabe aos arquitetos produzirem projetos que não impliquem em detalhes e execução difíceis. Na verdade eu poderia dizer que nossos projetos deveriam prever métodos construtivos que, mesmo quando "mal-feitos", continuassem a ser altamente expressivos ao mesmo tempo que testemunhassem a realidade sócio-econômica-cultural do nosso tempo.... ]

Notem que este trecho não foi escrito por um arquiteto esquerdista do terceiro mundo (como seria previsível), mas por um sofisticado profissional italiano, membro do "Star-System" internacional, com projetos espalhados desde os EUA , America Latina e Europa até a Ásia.

Euclides Oliveira.

segunda-feira, setembro 18, 2006

Na Boca da Noite

O galo morto,
A garrafa de pinga,
O charuto, a farofa,
Na quebrada da esquina;

O atrás – dos- muros,
Os anões dos jardins,
O chegar devagar
Do fim do dia;

Hora da Moura-Torta,
Hora do cachorro louco,
Hora do Velho-do-Saco,
Hora de assombração;

Os pássaros quietos
No alto das árvores,
O bater das asas
Dos morcegos no quintal;

A prata da lua
Nas folhas das bananeiras,
O sopro do vento
Nas cortinas que esvoaçam;

E a mãe que não chega,
O pai que não está,
O restar, ficar só,
Na boca da noite;

Os desvãos ocultos
Por pó e coisas velhas,
A ameaça que reside
Atrás de cada porta;

As sombras que ficam
No fim da escada,
O sótão escuro,
A lâmpada apagada;

O bonde que passa,
Os passos no pátio,
Os roncos que vêm
Do quarto ao lado;

E a promessa quebrada,
A jura descumprida,
O mal não desfeito,
A reza interrompida;

A gaveta aberta,
O retrato amarelado,
A fita vermelha,
A carta rasgada;

O vestígio dos sons
Que se foram com o dia,
O latido dos cães
Do fundo da noite;

O gemido, de súbito,
Do portão que se abre
O assoalho que range,
Alguém vai chegar.

(Quem?)

Euclides Oliveira - 2005.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Declaração de Voto

O que mais vem me preocupando nesta campanha eleitoral é o preconceito social ou de classe, cada vez mais explícito, na grande imprensa e entre conhecidos (o que é crime hediondo, pela nossa Constituição). O pobre é descartado com desdém, o seu voto vale menos, a julgar pelas manchetes dos jornais ( "Serra e Alckmin tem mais votos nas classes A e B e com os que possuem formação universitária", apregoam com satisfação), sua inclusão social é combatida como "assistencialismo" do governo e, ainda por cima, passa a ser, velada ou abertamente, responsabilizado pela criminalidade no país .

A falta generalizada, entre os bacanas, de um mínimo de respeito pelo nosso presidente, é uma afronta indesculpável, não admitem eles, ricos e famosos, portadores de diplomas de MBA, serem governados por um torneiro mecânico. A raiva do Serra (que me deu um calote feio em um projeto ganho em concurso público na administração anterior) não é contra a Marta, sua antecessora na Prefeitura, mais sim contra o Lula, pelo fato de ter perdido a eleição presidencial (ele, um PHD, ex-secretário, ex-ministro, ex-senador) para um simples operário. É revoltante ver no Congresso um tampinha, neto de um dos maiores canalhas desta república, o senador Antonio Carlos Magalhães, dizer que iria dar uma "surra" no presidente - um ódio e um desrespeito só explicado pelo preconceito de classe de um "coronelzinho" baiano. Quanto a mídia, duvido que um destes jornais dos Frias ou dos Mesquitas, pais, filhos ou netos, tratassem um presidente de sua classe social da maneira grosseira e arrogante com que tratam o Lula. Imaginem as manchetes e as campanhas intermináveis da "grande" imprensa se estes fatos do governo FHC houvessem ocorrido no governo atual:

- Um filho não reconhecido do presidente mantido em Lisbôa, junto com a mãe, pela rede Globo
- O Proer em geral e o Proer para o banco da nora em particular.
- Os grampos do BNDE
- A CPI dos bancos, barrada no Congresso.
- As bruxarias do câmbio e os bancos FonteCidam e Marka.
- O billhete de Chico Lopes (presidente do BC) para Salvatore Cacciolla (ou vice-versa)
- O bilhete do Chico Lopes para sua esposa sobre os 1,6 milhões de dólares no exterior.
- A prisão do Chico Lopes diante das câmeras de TV.
- O que o Brasil perdeu em divisas mantendo a paridade do dolar para que o FHC pudesse se
reeleger (o BC de Gustavo Franco).
- O sistema Radam e a Raytheon, na Amazônia.
- A surra nos índios nos 500 anos do descobrimento do Brasil, em Porto Seguro (?).
- As privatarias... a inacreditável crise de energia elétrica e os apagões... e por aí vai...

Moral da história: os empresários, capitalistas e milionários em geral podem ter seu caixa dois, venderem sem nota, formarem oligopólios ou mesmo quadrilhas ("lobbys") para corromperem a classe política, sonegarem impostos, subfaturarem importações, subornarem fiscais do governo em geral, combinarem os preços (e o mercado?) entre si, agirem como se a coisa pública fosse de sua propriedade particular, etc. Os pobres, evidentemente, não.

Transcrevo a seguir, por ser apropriado ao assunto, um texto do Prof. Henrique Rattner retirado do seu livro "O Resgate da Utopia", pags. 179 a 182.

[...."Segundo o dicionário de filosofia, ética é a ciência que tem como objeto os juízos de valor que distinguem entre o bem e o mal. Historicamente, moral e ética são tratados como sinônimos, mas, na filosofia alemã, desde Kant, no século do ilumunismo, a ética é considerada superior a moral. A moral é historicamente datada e suas normas e sanções mudam de acordo com a evolução e as transformações da sociedade, sempre refletindo a visão do mundo e o interesse das elites. Eloqüentes a respeito são as manifestações dos senhores escravocratas, dos capitalistas e tecnocratas, cujo discurso e prática, supostamente racionais e ideologicamente neutros, justificariam a pobreza e a desigualdade. Teorias "científicas" quando não doutrinas religiosas são invocadas ("a seleção natural dos mais aptos" ou as "leis de mercado") para determinar o código de conduta moral dos indivíduos e as sanções positivas ou negativas atinentes ao seu cumprimento ou transgressão. A ética postula um código de conduta para o grupo ou a comunidade de indivíduos que exige um comportamento baseado em valores. Para Hegel, a moral seria o domínio das intenções subjetivas, enquanto a ética seria o reino da moralidade absoluta".....]

[.... "A ética está fundamentada em valores de alcance universal - a conquista da felicidade e do bem-estar por meio da liberdade. Suas manifestações concretas são a cooperação e a solidariedade numa organização pluralista e de democracia participativa. A ética se refere a um devir, uma visão do futuro da humanidade que se pretende realizável. É o projeto do futuro - a utopia - que tem inspirado os pensadores libertários, desde Thomas More, os precursores do socialismo utópico (Fourier, Saint-Simon e R. Owen) até os defensores do socialismo "científico", baseado no materialismo dialético"....]

[..."Devido à concentração de capital e poder, as relações sociais continuam sendo autoritárias, impedindo a voz e vez às populações carentes.......Os efeitos sociais e culturais do funcionamento do sistema são desestruturadores: a corrida por competitividade e acumulação sufoca os valores de cooperação e solidariedade e reprime as manifestações de identidade cultural. Finalmente, o sistema é autodestrutivo em sua dinâmica: seu avanço está baseado na depredação do meio ambiente, o que mina a própria existência e sobrevivência da população, ignorando ou desprezando os direitos das gerações futuras"....]

[.... "Percebe-se, portanto, o esgotamento do paradigma de desenvolvimento capitalista, cuja natureza centralizadora e autoritária inviabiliza a evolução pacífica para um convívio democrático e solidário. Negamos legitimidade aos objetivos e prioridades economicistas, impostos pela lógica e o moral da globalização econômica-financeira. Conclamamos por uma construção de uma perspectiva social, democrática e sustentável que promova a liberdade e a dignidade humana. Enfim, um projeto do futuro, a utopia da transformação ética e cultural da humanidade como um todo.".....]

Trotsky costumava dizer que, por mais insignificante ou pequeno que fosse nosso papel na história, tínhamos de escolher um lado, um caminho. Eu escolhi o meu; vou votar no Luis Inácio Lula da Silva.

Euclides Oliveira.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Forma e Construção III

No artigo passado sobre este tema, fiz algumas considerações sobre a forma em contraposição ao formalismo; o século passado nos oferece exemplos conclusivos de como a burguesia apreende rapidamente os códigos formalistas ligados à estética do poder, do dinheiro, do "status social". O sucesso do neo-classicismo é prova disto, mesmo nas versões tresloucadas de Albert Speer e Piacentini. Mas o formalismo que mais rapidamente se espalhou pelo mundo foi o chamado pós-modernismo, apesar da fragilidade do seu embasamento teórico e do evidente oportunismo dos seus fundadores; vejamos o que nos tem a dizer Kenneth Frampton sobre um dos "Papas" deste pseudo movimento arquitetônico: [..."Venturi é de um cinismo inacreditável em relação aos desejos das pessoas. Apesar de ser um arquiteto ligado ao mundo acadêmico, um discípulo de Louis Khan, não poderia estar mais longe do mestre. Seu populismo barato, sustentado pela própria cultura norte-americana, causou (e causa) uma destruição difícil de avaliar...]

A dimensão da catástrofe foi determinada pela extraordinária capacidade da mídia daquele país em influenciar globalmente os basbaques ávidos por aderirem ao "American way of life" e, principalmente, por que se tratava do primeiro movimento arquitetônico realmente "made in USA" (Frank Lloyd Wright foi um fenômeno isolado e único); e assim, um pequeno grupo de arquitetos charlatões conseguiu difundir suas idéias pelo mundo, com os seus imitadores de plantão infectando suas cidades com obras caricatas que satisfizessem "os mercados" e agradassem "o gosto popular". Consumiu-se a arquitetura "Pop" como se consome as calças "jeans", a coca-cola, o hamburger, o rock'n roll, o "hot-dog", os filmes de Hollywood.

Observando-se hoje estes acontecimentos das décadas de sessenta e setenta do século XX, podemos perceber o quanto era reacionário, como se encaixava perfeitamente no neo-conservadorismo nascente este modelo "do kitsch", do mau gosto arrogante da classe média americana (apesar da impressão que ele causou ao Príncipe Charles, lá em suas ilhas). A verdade é que o movimento moderno esteve ligado, em suas origens, ao socialismo e com o enfraquecimento político das maiorias sociais perante as forças da economia global e da ditadura dos mercados, os atores culturais (principalmente os do terceiro mundo) ficaram ideologicamente fragilizados e profissionalmente dependentes, com o retraimento do Estado, das elites dominantes e de suas fantasias estéticas.

Na arquitetura dos países centrais do capitalismo, vemos hoje uma pesquisa de linguagem constante ou então uma procura de fundamentos formais e de método nas tecnologias ditas "de ponta" que não conseguem disfarçar o seu lado formalista, devido a ausência de uma ideologia que as sustente além dos fatores de produção e consumo (exceção, como sempre, para os Álvaro Siza, os José Luiz Mateo, os Herman Hertzberger,etc). Acho que nós, arquitetos da periferia do capitalismo, não podemos nos dar ao luxo desta reticência em enfrentar o real. Temos todo um território a organizar, cidades a reurbanizar, escolas, habitações, creches e postos de saúde a construirmos. Ao contrário da América do Norte e da Europa, que há anos estão derivando para a direita, a América do Sul parece estar buscando um caminho para diminuir suas diferenças sociais e aumentar a inclusão econômica e cultural de sua população. A hora é esta.

Euclides Oliveira

quarta-feira, setembro 06, 2006

Petrópolis

- Laudes
Na fria madrugada da montanha
A alta araucária, sobranceira,
Eleva-se das sombras do jardim,
Sentinela da primeira luz.

- Prima Ora
No piso antigo das calçadas
O limo frio, escorregadio;
A grama escura que cresce
Ao redor do canteiro da flor.

- Terça Ora
O zunzunir dos insetos
E as vergas vivas que são
Os fios pejados de andorinhas
Enfileiradas; re-pousadas.

- Sexta Ora
Solares bonachões,
Grandes sossegados,
Tomando seu sol
Na modorra da tarde...

- Nona Ora
Ao lado da praça
A velha catedral;
O telhado, o tijolo, a cantaria,
A escadaria, a ponte, o canal.

- Vésperas
O ruço, espesso, grave,
Desce a serra e, ao pé dos morros,
Esconde o casario e os longos vales
Entrecortados de rios urbanizados.

- Completas
O passar pausado das charretes
Que voltam, afinal, ao seu lugar,
Os cascos dos cavalos a estalarem
No pavimento das ruas da cidade.

- Noturno
A noite cresce o canto
Dos grilos no barranco;
Vem o vento e o cheiro de mato,
Vão-se as nuvens, vem o luar.

segunda-feira, setembro 04, 2006

Forma e Construção II

Forma- segundo o filósofo grego Aristóteles, um do elementos que constituem uma "Substância" individual (o outro elemento é a matéria). É a Forma que torna a substância inteligível, isto é, permite que esta seja apreendida pela mente através dos sentidos. A forma define aquilo que a Substância é. Para o filósofo alemão Emmanuel Kant, a Forma não faz parte da Substânca, sendo algo acrescentado por duas faculdades da mente, a Sensibilidade (faculdade de perceber) e o Entendimento (faculdade de raciocinar). As Formas introduzidas pele Sensibilidade são responsáveis pela nossa percepção do mundo como sendo constituído por objetos dispostos no espaço e subsistindo no tempo, enquanto que as Formas induzidas pelo Entendimento nos permitem pensar os objetos assim ordenados em termos de conceitos e proposições.(1)

Parece-me que na arquitetura, damos forma à matéria com intenção estética, com o objetivo de construir abrigos para as atividades humanas. Já vimos anteriormente que Mies dizia que "a arquitetura é a arte da construção", ou seja, a forma arquitetônica surge da matéria bruta organizada sabiamente segundo a tecnologia utilizada. Mas o Entendimento da Forma precede a sua materialização, ela é, na arquitetura, uma criação intelectual construída sobre hipóteses previamente apreendidas; mas quero aqui salientar que é preciso cuidado com modelos, as formas (arquitetônicas) da história voltam quase sempre como instrumentos de dominação cultural e política dos povos da periferia do capitalismo, como expressão formal do poder e da riquesa das elites econômicas.

Acho que para entender-se a arquitetura enquanto forma (inerente a construção), é necessário dispor-se de uma experiência anterior elaborada pelo Entendimento; o que é uma casa, uma igreja, um palácio, um hospital. Assim sendo, nossa compreensão da relação entre forma e função é fundalmentalmente empírica. Mas arquitetura não se resume ao trinômio forma-função-construção: ela tem de relacionar-se corretamente com a vizinhança, com a paisagem, ou seja, respeitar a escala do lugar, adequar-se ao clima local, utlilizar com sabedoria a luz, o vento, a tradição construtiva local. A forma tem de ser significativa também em seus aspectos imateriais, arquetípicos, simbólicos, deve saber lidar com o mito, o sagrado e o mágico.

E o formalismo? Como dizia Bernard Huet, "formalismo não é uma questão de forma"; Walter Benjamin ressaltava que "o fascismo é o maior dos formalismos pois ele pratica uma estetização dos anseios da sociedade a fim de mascarar os seus conflitos". É isto aí, o formalismo é a estetização burocrática da arquitetura, a tecnologia utilizada como um fim em si, a mera adequação dos espaços aos preceitos funcionais sem levar em conta suas exigências sociais, a estética do mercantilismo, a redução da vida real a estilos ultrapassados ou alienígenas.

E a Arte? Lúcio Costa citou, em seu livro de memórias, uma ótima definição de Clive Bell (escritor, cunhado de Virgínia Woolf): "Art is a significant form".

(1) Góes, Pedro, Pequeno Dicionário de Filosofia e Ciências, pag. 13.

sexta-feira, setembro 01, 2006

A rua segundo Leonardo Benévolo.

No texto anterior "A cidade segundo Pierre Diaz", havíamos chegado ao ponto em que este afirmava que, desde a Renascença até o século XVIII, a morfologia das cidades européias refletia a ascensão da burguesia ao poder, utilizando-se da expressão de Françoise Choay para definir o espaço público resultante como o "espaço do espetáculo". Neste entretempo aconteceram a contra-reforma e a inquisição, a colonização brutal do Novo Mundo e a reintrodução da escravidão no ocidente, seguida do avanço das grandes potências européias sobre a África, o sul e o sudeste da Ásia; com a Revolução Francesa tiveram fim as monarquias absolutistas e
acelerou-se o processo de acumulação do capital, tendo início, igualmente, a formação do proletariado nas cidades, que cresciam desordenadamente na incipiemte revolução industrial.

A arquitetura oficial do final do século XVIII até meados do século XIX foi, sem dúvida, o neo-classicismo, mas o urbanismo, o espaço público, como se transformaram eles no "espaço de circulação" de Choay? Leonardo Benévolo, em seu livro "A Cidade na História da Europa", tem uma explicação convincente para o fato: [... A rua oitocentista, embora derive da rua medieval, acaba por modificá-la e destruí-la; os caminhos antigos são alargados, as fachadas são reconstruídas, as malhas irregulares são substituídas por um desenho regular......A Haussmanização conduz assim a destruição dos centros antigos. Nasce uma retórica tendenciosa que exagera a ruína, a insalubridade, a miséria das partes mais antigas da cidade e que chega mesmo a penetrar na linguagem burocrática......A demolição dos muros perimétricos, que ocorre em quase toda a parte, está associada a ruptura dos vínculos com o passado, à conquista do ar, da luz, da liberdade de movimentos. Da destruição são excluídos os edifícios antigos mais importantes, que a história da arte classifica como documentos históricos e modelos dos estilos restrospectivos para a nova construção civil e que a consciência coletiva considera indispensáveis para a caracterização dos locais. Esses edifícios são isolados e utilizados como focos perspectivos dos novos espaços urbanos, onde, todavia, acabam por deixarem de se destacar porque as novas construções, mais densas, imitam suas dimensões. Tornam-se "monumentos" separados do ambiente urbano, tal como no museu, as obras de arte estão separadas do circuito quotidiano de fruição.

Nesta situação a arte começa a separar-se da vida, o ambiente quotidiano começa a ficar mais pobre e a beleza transfere-se para a esfera do entretenimento, do tempo livre...] (do turismo, acrescento eu).

No Brasil, este fenômeno só veio a se manifestar nas primeiras décadas do século XX, com a remodelação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, afrancesada pelas mãos de Paulo de Frontin e de Pereira Passos. Foi então aberta (ou melhor, rasgada) a Avenida Central (a atual Av. Rio Branco) sobre a antiga cidade colonial portuguesa, para gáudio dos que a achavam, a maneira do poeta Olavo Bilac, "imunda e retrógada". Como já comentei em meu texto inicial deste Blog, era o ecletismo a linguagem que mais servia aos interesses da burguesia local, na época, e assim, segundo este "estilo", foram erguidos os prédios ao longo dos dois quilômetros da nova avenida; os ares europeus também aqui faziam bem à necessidade de exibição dos novos ricos.

Mas a cidade colonial não era desprovida de elementos urbanos consolidados ou edifícios de arquitetura significativa: além dos numerosos conventos e igrejas do clero ou das ordens laicas, haviam monumentos como o aqueduto da Carioca (os Arcos da Lapa), belo em si mesmo até os dias de hoje; o Largo do Paço, voltado para a baía da Guanabara, com o chafariz de mestre Valentim e o cais em cantaria do engenheiro sueco Jacques Funck; o passeio público, que, aliás, de público não tinha nada, completamente cercado por grades que era, sendo seu uso reservado aos barões e patrões bem situados na vida e sua respectivas famílias; o Paço de São Cristovão, o do Conde de Itamaraty, o prédio da Alfândega, a Santa Casa de Misericórdia... Também este patrimônio se viu envolvido (e as vezes destruido) pelos novos discursos urbanos trazidos para os trópicos, primeiro da França e depois (horror, catástrofe) dos EUA. O curioso é que aqui cabe, com alguma ironia, a observação de Benévolo sobre os novos espaços "Haussmanianos", que isolavam os edifícios historicamente significativos para transformá-los em monumentos "perspectivados", apartados da vida urbana; já na era moderna foi aberta, no Rio de Janeiro, a Av. Pres. Vargas, perpendicular à antiga Av. Central e que tem como ponto de fuga de sua majestosa perspectiva, rasgada por sobre a velha cidade, os "fundos", da Igreja de Nossa Senhora da Candelária, construída no início do século XIX, sendo sua fachada principal voltada para o outro lado (felizmente de escala mais amigável), a praça Pio X.

Euclides Oliveira