PALLADIO

sábado, março 22, 2008

CIDADE E UTOPIA

Sempre achei que o modernismo foi magnífico ao lidar com escalas pequenas ou médias (as habitações e edificações em geral, o quarteirão) e infeliz na organização dos grandes espaços e no projeto em escala urbana. Esta singularidade pode ser vista desde Le Corbusier e Mies van der Rohe até Oscar Niemeyer, em nossos dias (veja-se de nosso Mestre, por exemplo, a diferença de qualidade entre a bela sede do Partido Comunista Francês e a Universidade de Constantine, ou o Memorial da América Latina). Relendo uma revista “Domus” antiga (1987) encontrei uma entrevista com o crítico alemão Wolf Jobst Siedler com o título acima, e que aborda as dificuldades dos arquitetos modernistas em lidar com as cidades, da qual traduzo os trechos mais interessantes (apesar de achar, no autor, um certo reacionarismo latente).

[... Todas as cidades se auto-renovam através de nexos particulares. No entanto eu tenho dúvidas a este respeito; eu me pergunto se não existem elementos constantes no “gestalt” de uma cidade, que permanecem apesar das transformações sociais e formais desta última. É sempre com espanto renovado que eu me deparo com as plantas das cidades da antiguidade escavadas – tais como Sybaris, Lokris ou Metapont – tudo nelas me parece familiar, até a disposição das ruas. Em toda a parte, seja no Egito ou na Mesopotâmia, as ruas eram largas o bastante para que uma carroça de bois por elas passasse. As ruas principais eram duas ou três vezes mais largas do que as locais, nelas várias carroças podiam trafegar ao mesmo tempo. Na periferia das cidades os edifícios tinham dois ou três andares enquanto que nas avenidas eles tinham três ou quatro. Podemos imaginar nos mudando para uma destas casas sem dificuldades. Elas estão no nosso imaginário, tudo nos é familiar.

Estas cidades foram destruídas há 3000 ou 4000 anos atrás e deveriam parecer muito estranhas para nós. Mas se pelo menos os planos viários da Paris dos Bourbons, ou os de Londres da rainha Vitória, ou ainda os de Berlim de Schinkel, tivessem sobrevivido, suas dimensões não teriam se revelado muito diferentes dos da Babilônia. Parece-me que isto tem tudo a ver com “constantes”: o olho humano reconhece uma face a uma distância de 80 metros; a voz humana alcança 60 metros, podendo assim alguém chamar um conhecido do outro lado da rua ou falar com as crianças de uma janela tanto em Pompéia quanto em Philipsburg. A transformação das cidades primitivas para as da antiguidade, e destas para as medievais e em seguida até as cidades do século dezenove, foram, neste aspecto, muito pequenas. Tais “constantes” sempre sobreviveram; e assim, estas tipologias urbanas com mil anos de idade são mais familiares para nós do que as produzidas com uma visão futurista, no século vinte. Vamos imaginar que daqui a outros mil anos, as fundações de Chandigarh ou Brasília* viessem a ser redescobertas e escavadas: quem as olhasse, então, teria a sensação de que algo inteiramente novo começara ali, algo que não havia existido na história das civilizações nos 5000 anos anteriores. Minha pergunta é bastante simples: em se construindo, não deveríamos nos voltar com as novas técnicas para os fundamentos básicos de toda e qualquer vida humana? Não teria a crença no projeto de novas cidades baseada apenas em um ponto de vista intelectual nos levado a um desastre – um desastre intelectual ou mesmo formal? Em relação à forma, a arquitetura moderna foi consideravelmente superior à desenvolvida no final do século dezenove. No que diz respeito ao desenho da forma, Le Corbusier, Mies van der Rohe e Frank Lloyd Wright foram magistrais: a linha pura, o cubo perfeito. O modernismo perdeu-se não na concepção da forma, mas na conceituação teórica....]


Parece-me que, como eu, o Wolf Siedler também acha que o modernismo funcionava ao nível do edifício em si, mas quando chegava à escala da cidade ou dos grandes conjuntos arquitetônicos, “saía do eixo”. O plano do Le Corbú para Paris, destruindo todo o Marais para nele colocar alguns “arranha-céus”, parece hoje coisa de um lunático; é inimaginável como ficariam Nemours, na Algéria, o Rio de Janeiro e São Paulo, reurbanizados através de imensos edifícios-minhocões, com vários quilômetros de comprimento, passando por cima do relevo e das cidades, arrematados com autopistas de altas velocidades em suas coberturas... Quanto a Mies, basta comparar a qualidade dos seus edifícios para o MIT com o plano insosso do Campus, também de sua autoria, e por aí vai, seria até tedioso enumerar aqui os fracassos do urbanismo modernista...

Bom, Wolf Siedler termina a sua entrevista dizendo que a utopia modernista da cidade implicava “em por os pés para fora da história”, contando com a aparição de um novo tipo de homem, "libertado" pelo automóvel de sua vizinhança paroquial, possuidor de uma “nova cultura”, enfim, um ser idealizado, homogeneizado, inexistente e conclui:

[... As pessoas querem entrar em seus automóveis e irem para o campo, elas querem a liberdade de locomoção, elas querem também poder sair de vez em quanto da sua vizinhança, algo que não podiam fazer facilmente outrora. Mas na noite de domingo elas não querem voltar para um “arranha-céu” no meio do campo, elas querem voltar para casa em uma tranqüila rua local ou em uma praça movimentada de uma cidade...]

Alguns fundamentos das cidades parecem ser arquetípicos, como o espaço público em escala gregária, permitindo o encontro,o contato pessoal, o casual, o inesperado; a sensação de segurança que a comunidade (vizinhança) dá; a possibilidade de acesso ao conhecimento e a cultura comuns, ao lazer, etc. Seria então a Utopia das cidades um exercício inútil? A resposta, creio que está nestes versos de Eduardo Galeano:

Para que serve a Utopia?
Ela está diante do horizonte,
Me aproximo dois passos
E ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos
E o horizonte correu
Dez passos mais à frente.
Por muito que caminhe
Nunca a alcançarei.
Para que serve a Utopia?
Serve para isso, para caminhar.


Nota – Fiz a tradução do inglês para o português um tanto livremente, pois a tradução do alemão para o inglês estava um pouco confusa.

* - Troquei o nome de uma desconhecida cidade alemã planejada por Brasília, esta sim a altura de Chandigarh.