PALLADIO

quarta-feira, janeiro 20, 2010

ORLAS MARÍTIMAS

Lendo o artigo de Josep María Montaner sobre a atual intervenção urbana na Barceloneta pensei, como era natural, na urbanização das praias de minha cidade natal, o Rio de Janeiro, prioritariamente nas de Copacabana, Ipanema e Leblon, que conheço bem desde a minha juventude e na da Barra da Tijuca, esta de tempos recentes.

Como Colônia que éramos, de Portugal, a orla marítima do Rio de Janeiro foi, desde a fundação da cidade, posse de comerciantes e oficiais portugueses em aforamentos e “enfiteuses” de terras Del-Rei que, com o passar do tempo, transformaram-se em chácaras de proprietários vários, com suas praias habitadas inicialmente por índios Tamoios e depois por pescadores e baleeiros. Deste estágio, de praias selvagens com algumas choças esparsas e roças, Copacabana, Ipanema e Leblon (a Sacopenapã Tupi) passaram diretamente, no final do século XIX e no início do seguinte, a serem loteadas por companhias “urbanizadoras”, com ruas regulares de malha cartesiana, onde se estabeleceram, em casas no estilo eclético então vigente, parcelas da classe média e da alta burguesia carioca.

Com a migração e o aumento da população, Copacabana, primeiro, e logo após Ipanema e Leblon viram desaparecer suas residências, paulatinamente demolidas e substituídas por edifícios de apartamentos, no início formados sob o imaginário urbano de origem européia e mais tarde pela ocupação inspirada no “laissez-faire” das cidades capitalistas norte-americanas. O proletariado lúmpem ou simplesmente os pobres ocuparam os morros limítrofes destes bairros, permanecendo assim perto de seus locais de trabalho, no comércio ou no serviço doméstico dos apartamentos das classes média e rica.

Havia assim certa democratização do acesso à orla marítima, proporcionada pela malha regular das ruas sombreadas por amendoeiras definindo os quarteirões edificados, facilitando o acesso às praias tanto do morador da favela quanto do da zona norte do Rio de Janeiro, que vinha para a zona sul a procura do sol e do mar.

Já na Barra, a ocupação do solo é tipicamente de raiz neoliberal (a não ser na assim chamada “Barrinha”, que reproduz a implantação dos bairros da zona sul carioca), onde o espaço urbano e a arquitetura foram transformados em mercadorias a serem vendidas como outras quaisquer e cuja maior conseqüência (fruto das decisões do “mercado”), foi a de tornar a praia praticamente exclusiva dos ricos condomínios a ela adjacentes e dos automobilistas que se disponham a procurar, por quilômetros, uma vaga na conturbada Avenida Sernambetiba (atual Avenida Lucio Costa).

Tal fato é visivelmente gerado pela atual organização urbana do local; a Avenida das Américas (BR 101), paralela à praia e de intenso movimento separa a baixada da restinga de Jacarepaguá cortando-a de ponta a ponta, constituindo-se em obstáculo de difícil transposição para o pedestre. Ladeando a pista do lado do mar erguem-se as barreiras dos condomínios fechados (casas e prédios de apartamentos) que se alternam com “shopping-centers” e edifícios para serviços, igualmente murados. Durante um extenso trecho da costa encontra-se a lagoa de Maraependi, cuja transposição é feita por barcas de posse e uso exclusivo de cada condomínio, sendo os acessos viários públicos possíveis apenas nas suas extremidades. Logo após a lagoa (na realidade uma laguna) ou após as torres de habitações, segue-se a Avenida Sernambetiba e o mar.

Como se vê, para as classes pobres restou a alternativa de erguerem suas habitações na baixada do outro lado da Avenida das Américas, ao longo da Via Amarela (dotada esta com uma praça de pedágio) ou na periferia de Jacarepaguá, que conta com grande número de favelas.

Desta maneira, a democratização do uso da orla marítima existente na Zona Sul, aqui foi para o espaço, tomando o seu lugar uma brutal separação física de classes e a exclusão absoluta da pobreza da área rica do bairro, em um regime de ”apartheid” social ferrenho. Tal situação gera inclusive patologias de comportamento como o dos jovens habitantes de um desses condomínios de luxo que surraram sem pretexto, no ano passado, uma doméstica que se encontrava em um ponto de ônibus na Avenida das Américas (qualquer semelhança com os vândalos que atearam fogo em um índio Pataxó em Brasília, não é mera coincidência: trata-se da organização do espaço urbano contribuindo para a delinqüência juvenil).

Ironicamente, fica no Rio de Janeiro uma das melhores reurbanizações de orla marítima do mundo; trata-se do Aterro do Flamengo, projeto de Affonso Reydi com paisagismo de Burle Marx. O que poderia ser apenas um aterro para pistas de automóveis foi concretizado por Reydi como um magnífico espaço urbano, que dialoga com a monumentalidade da paisagem da baía da Guanabara, e harmoniza com perfeição suas diversas funções – a viária, a de parque, a de lazer, a cultural e a esportiva. Ali o espaço público foi redemocratizado, devolvendo-se com grande qualidade urbana, a orla das enseadas do Flamengo e de Botafogo à população dos bairros vizinhos e à cidade em geral.

N.B. – Tenho a mais absoluta certeza que não foi esta a Barra que o Dr. Lúcio sonhou em seu plano piloto de 1969; a monstruosidade urbana que hoje lá está nada tem a ver com as crenças e idéias do Mestre, assim como a separação física das classes sociais hoje existente em Brasília não corresponde ao seu pensamento. Ressalte-se por justa também a luta de tantos anos dos arquitetos Fernando Chacel e Sidney Linhares para preservar os manguezais e a vegetação dos espaços perilagunares da região.

terça-feira, janeiro 12, 2010

A CONDIÇÃO HUMANA

Com a chuva abafada que caía lá fora o bar estava lotado. Dois homens de meia idade entraram no salão, suspirando com o choque do ar condicionado; vestiam capas de chuva e pareciam aliviados por encontrarem um pouso seguro em meio ao aguaceiro tropical. Passaram os olhos pela fauna local e escolheram uma mesa em um ambiente mais sossegado, um avarandado lateral da casa.

- Garçom, dois chopes, - pediu o mais baixo dos dois, que tinha a face afogueada de uma criança que acabara de fazer uma travessura.

- E dois genebras bem gelados, - completou o outro.

Olharam novamente ao redor e iniciaram uma conversa em voz baixa.

- Então, tu achas que conseguimos? – perguntou o cara-de-moleque, com a segurança de quem conhecia a resposta.

- Conseguimos. A ECV-2A está se reproduzindo há horas.

- Mitose clássica, não? A cada noventa minutos.

- Certamente. Amanhã verificaremos quantas células estarão naquela lâmina.

- Amanhã? Teremos de esperar até amanhã?

- Não dormimos há quatro noites, cara; se não descansarmos um pouco seremos conhecidos como os mortos que criaram a vida.

- Uau! Criamos vida então?

- Claro! Não é ela que está naquela lâmina?

- Era o que queríamos... Parecia tão improvável! No começo eu... Começamos montando algumas proteínas...

- E chegamos lá; mas me parece que não consegues expressar os teus grandes pensamentos nesta hora, não? E enquanto isso o ACV-2A está lá, se dividindo.

- Criamos vida... Somos como deuses então? – Riu sem jeito.

- Ou demiurgos. Homens é que não somos mais.

- Não somos mais humanos? Que queres dizer?

- Que acho que não somos humanos. Afinal ultrapassamos a última fronteira do cosmos. A partir de meia dúzia de moléculas.

- Do cosmos? De que estás falando?

- Que a vida é a criação mais perfeita do cosmos.

- E quem criou o cosmos?

Suspenderam a conversa enquanto o garçom servia as bebidas.

- Em nossa escala, foi quem inventou os aceleradores de partículas tonto. Com eles podíamos criar matéria, mas vida, não.

- Pôrra, como isto é excitante! Mas continuamos os mesmos, quero dizer, tu e eu continuamos homens não?

- Homens não. Somos deuses.

-Mas continuamos mortais...

- Então descobrimos que os deuses são mortais.

- Mas a Nice me espera em casa, vou chegar, beijá-la, dormir...

- Esta noite ela dormirá com um deus.

- Não brinque assim! A vida sempre gerou novas vidas.

- A vida sempre reproduziu a vida e tu sabes bem disto. Criar é uma coisa, replicar é outra.

- É... Mas ainda me sinto um homem...

- Mas não és; desculpe a pompa e circunstância, porém nós transcendemos a condição humana.

- Como assim?

- Pense grande! A vida não é mais uma singularidade que aconteceu ao acaso em um canto do universo. Ela apareceu aqui, novamente, por nosso engenho, por nossas mãos.

Algo os perturbou; olharam para fora, a chuva havia cessado.

- Mas ainda somos seres vivos, cara.

- Sim, mas com o poder de criar vida!

- E o que tu achas que isto muda em nós?

- Muda nossa essência.

- Olha, vou te dar um exemplo: se amanhã eu herdasse uma fortuna, isto me faria um milionário. Certamente eu mudaria em muitos aspectos, mas ainda assim seria um ser humano.

- Seria.

- Eu mudaria meu modo de vida, até de pensar...

- Estás simplificando o que já é simples. Não adquiriste algo novo, mas sim criaste uma vida, te tornaste um deus.

Pediram mais bebidas e esperaram calados enquanto o garçom as trazia.

- Fala sério, achas que eu não sou mais um ser humano?

-Acho. Tu és um ser divino. Eu também sou.

- Mas por quê? Como fundamentar esta afirmação?

- Em nossa civilização, até o dia de hoje, achava-se que uma vida não poderia criar outra vida, somente um deus o poderia fazer. Era cultural, isto. Filosófico. Nós acabamos de criar uma outra vida, então não somos seres humanos, somos seres divinos.

- Insisto que ainda sou um ser vivo.

- Está bem; és um ser vivo divino.

- E continuo não sendo imortal.

- E quem te disse que deuses devem ser imortais? Na mitologia nórdica os deuses morrem ao final de sua saga. E Jesus morreu crucificado.

- Mas ressuscitou.

- Mas antes morreu meu caro. Portanto um deus pode morrer. Um deus morre.

- Mesmo ressuscitando depois?

- Tanto faz. Morreu, morreu. Se ressuscita ou não é outra história.

- Que confusão. Por que começamos a falar disto?

- Ora, esta é boa! Por causa do ECV-2A!

-Quis dizer de imortalidade.

- De imortalidade não; de divindade.

- Correto, somos divinos então. E esta gente aqui no bar não sabe que há dois deuses entre eles.

- Não têm como saber. Estás certo, não sabem.

- Então pode ter havido outros deuses entre nós e os ignoramos por completo?

- Assim como colocas sim, pode ter havido; mas não acho provável. De uma ou outra maneira a humanidade acabaria por saber.

- Por quê?

- Por que é algo grande demais; a notícia do fato acabaria por vir à tona. Este algo mudaria a humanidade.

- Nós vamos mudar a humanidade?

- Muito provavelmente.

- Por que somos deuses?

- Não, por que o fato em si transcende todas as idéias de natureza e humanidade que tivemos até hoje. Mudaremos o porvir.

- Mal posso esperar a hora de contar para a Nice!

- No nosso caso eu esperaria um pouco mais.

- Tu não vais contar para a Bete?

- Ainda não. E temos de pensar no Dr. Johnson também.

- O Dr. Johnson vive se embebedando por aí.

- Não importa. Ou melhor, facilita. Mas temos de pensar em como agir com ele.

- Patentes?

- Isto também.

- Diga-me, será que não explicamos apenas um processo, conseguimos reproduzir um processo, só isto?

- E achas pouco? Isto nos apartou da humanidade!

- A coisa toda está muito no início, não sabemos como ela irá evoluir.
Teremos de esperar, trata-se da evolução de um... Poderá demorar séculos!

- Ambos conhecemos bem engenharia genética, podemos acelerar o processo.

O homem mais baixo passou os olhos sobre o bar. Via uma imensa planície à sua frente.

- Me diga outra coisa; achas que vamos mudar a humanidade para melhor ou para pior?

- Não sei. – O homem alto sorriu. - Não sou onisciente.

- Como um demiurgo?

- Sou um demiurgo mas não uma Sibila. Nem ao menos sei se sou eterno.

- Bom, imortal tu não és.

- Claro que não, cara! Será que ainda não sacaste?

-Saquei. Garçom, mais um chope pro divino aqui.