A CONDIÇÃO HUMANA
- Garçom, dois chopes, - pediu o mais baixo dos dois, que tinha a face afogueada de uma criança que acabara de fazer uma travessura.
- E dois genebras bem gelados, - completou o outro.
Olharam novamente ao redor e iniciaram uma conversa em voz baixa.
- Então, tu achas que conseguimos? – perguntou o cara-de-moleque, com a segurança de quem conhecia a resposta.
- Conseguimos. A ECV-2A está se reproduzindo há horas.
- Mitose clássica, não? A cada noventa minutos.
- Certamente. Amanhã verificaremos quantas células estarão naquela lâmina.
- Amanhã? Teremos de esperar até amanhã?
- Não dormimos há quatro noites, cara; se não descansarmos um pouco seremos conhecidos como os mortos que criaram a vida.
- Uau! Criamos vida então?
- Claro! Não é ela que está naquela lâmina?
- Era o que queríamos... Parecia tão improvável! No começo eu... Começamos montando algumas proteínas...
- E chegamos lá; mas me parece que não consegues expressar os teus grandes pensamentos nesta hora, não? E enquanto isso o ACV-2A está lá, se dividindo.
- Criamos vida... Somos como deuses então? – Riu sem jeito.
- Ou demiurgos. Homens é que não somos mais.
- Não somos mais humanos? Que queres dizer?
- Que acho que não somos humanos. Afinal ultrapassamos a última fronteira do cosmos. A partir de meia dúzia de moléculas.
- Do cosmos? De que estás falando?
- Que a vida é a criação mais perfeita do cosmos.
- E quem criou o cosmos?
Suspenderam a conversa enquanto o garçom servia as bebidas.
- Em nossa escala, foi quem inventou os aceleradores de partículas tonto. Com eles podíamos criar matéria, mas vida, não.
- Pôrra, como isto é excitante! Mas continuamos os mesmos, quero dizer, tu e eu continuamos homens não?
- Homens não. Somos deuses.
-Mas continuamos mortais...
- Então descobrimos que os deuses são mortais.
- Mas a Nice me espera em casa, vou chegar, beijá-la, dormir...
- Esta noite ela dormirá com um deus.
- Não brinque assim! A vida sempre gerou novas vidas.
- A vida sempre reproduziu a vida e tu sabes bem disto. Criar é uma coisa, replicar é outra.
- É... Mas ainda me sinto um homem...
- Mas não és; desculpe a pompa e circunstância, porém nós transcendemos a condição humana.
- Como assim?
- Pense grande! A vida não é mais uma singularidade que aconteceu ao acaso em um canto do universo. Ela apareceu aqui, novamente, por nosso engenho, por nossas mãos.
Algo os perturbou; olharam para fora, a chuva havia cessado.
- Mas ainda somos seres vivos, cara.
- Sim, mas com o poder de criar vida!
- E o que tu achas que isto muda em nós?
- Muda nossa essência.
- Olha, vou te dar um exemplo: se amanhã eu herdasse uma fortuna, isto me faria um milionário. Certamente eu mudaria em muitos aspectos, mas ainda assim seria um ser humano.
- Seria.
- Eu mudaria meu modo de vida, até de pensar...
- Estás simplificando o que já é simples. Não adquiriste algo novo, mas sim criaste uma vida, te tornaste um deus.
Pediram mais bebidas e esperaram calados enquanto o garçom as trazia.
- Fala sério, achas que eu não sou mais um ser humano?
-Acho. Tu és um ser divino. Eu também sou.
- Mas por quê? Como fundamentar esta afirmação?
- Em nossa civilização, até o dia de hoje, achava-se que uma vida não poderia criar outra vida, somente um deus o poderia fazer. Era cultural, isto. Filosófico. Nós acabamos de criar uma outra vida, então não somos seres humanos, somos seres divinos.
- Insisto que ainda sou um ser vivo.
- Está bem; és um ser vivo divino.
- E continuo não sendo imortal.
- E quem te disse que deuses devem ser imortais? Na mitologia nórdica os deuses morrem ao final de sua saga. E Jesus morreu crucificado.
- Mas ressuscitou.
- Mas antes morreu meu caro. Portanto um deus pode morrer. Um deus morre.
- Mesmo ressuscitando depois?
- Tanto faz. Morreu, morreu. Se ressuscita ou não é outra história.
- Que confusão. Por que começamos a falar disto?
- Ora, esta é boa! Por causa do ECV-2A!
-Quis dizer de imortalidade.
- De imortalidade não; de divindade.
- Correto, somos divinos então. E esta gente aqui no bar não sabe que há dois deuses entre eles.
- Não têm como saber. Estás certo, não sabem.
- Então pode ter havido outros deuses entre nós e os ignoramos por completo?
- Assim como colocas sim, pode ter havido; mas não acho provável. De uma ou outra maneira a humanidade acabaria por saber.
- Por quê?
- Por que é algo grande demais; a notícia do fato acabaria por vir à tona. Este algo mudaria a humanidade.
- Nós vamos mudar a humanidade?
- Muito provavelmente.
- Por que somos deuses?
- Não, por que o fato em si transcende todas as idéias de natureza e humanidade que tivemos até hoje. Mudaremos o porvir.
- Mal posso esperar a hora de contar para a Nice!
- No nosso caso eu esperaria um pouco mais.
- Tu não vais contar para a Bete?
- Ainda não. E temos de pensar no Dr. Johnson também.
- O Dr. Johnson vive se embebedando por aí.
- Não importa. Ou melhor, facilita. Mas temos de pensar em como agir com ele.
- Patentes?
- Isto também.
- Diga-me, será que não explicamos apenas um processo, conseguimos reproduzir um processo, só isto?
- E achas pouco? Isto nos apartou da humanidade!
- A coisa toda está muito no início, não sabemos como ela irá evoluir.
Teremos de esperar, trata-se da evolução de um... Poderá demorar séculos!
- Ambos conhecemos bem engenharia genética, podemos acelerar o processo.
O homem mais baixo passou os olhos sobre o bar. Via uma imensa planície à sua frente.
- Me diga outra coisa; achas que vamos mudar a humanidade para melhor ou para pior?
- Não sei. – O homem alto sorriu. - Não sou onisciente.
- Como um demiurgo?
- Sou um demiurgo mas não uma Sibila. Nem ao menos sei se sou eterno.
- Bom, imortal tu não és.
- Claro que não, cara! Será que ainda não sacaste?
-Saquei. Garçom, mais um chope pro divino aqui.
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