PALLADIO

terça-feira, janeiro 12, 2010

A CONDIÇÃO HUMANA

Com a chuva abafada que caía lá fora o bar estava lotado. Dois homens de meia idade entraram no salão, suspirando com o choque do ar condicionado; vestiam capas de chuva e pareciam aliviados por encontrarem um pouso seguro em meio ao aguaceiro tropical. Passaram os olhos pela fauna local e escolheram uma mesa em um ambiente mais sossegado, um avarandado lateral da casa.

- Garçom, dois chopes, - pediu o mais baixo dos dois, que tinha a face afogueada de uma criança que acabara de fazer uma travessura.

- E dois genebras bem gelados, - completou o outro.

Olharam novamente ao redor e iniciaram uma conversa em voz baixa.

- Então, tu achas que conseguimos? – perguntou o cara-de-moleque, com a segurança de quem conhecia a resposta.

- Conseguimos. A ECV-2A está se reproduzindo há horas.

- Mitose clássica, não? A cada noventa minutos.

- Certamente. Amanhã verificaremos quantas células estarão naquela lâmina.

- Amanhã? Teremos de esperar até amanhã?

- Não dormimos há quatro noites, cara; se não descansarmos um pouco seremos conhecidos como os mortos que criaram a vida.

- Uau! Criamos vida então?

- Claro! Não é ela que está naquela lâmina?

- Era o que queríamos... Parecia tão improvável! No começo eu... Começamos montando algumas proteínas...

- E chegamos lá; mas me parece que não consegues expressar os teus grandes pensamentos nesta hora, não? E enquanto isso o ACV-2A está lá, se dividindo.

- Criamos vida... Somos como deuses então? – Riu sem jeito.

- Ou demiurgos. Homens é que não somos mais.

- Não somos mais humanos? Que queres dizer?

- Que acho que não somos humanos. Afinal ultrapassamos a última fronteira do cosmos. A partir de meia dúzia de moléculas.

- Do cosmos? De que estás falando?

- Que a vida é a criação mais perfeita do cosmos.

- E quem criou o cosmos?

Suspenderam a conversa enquanto o garçom servia as bebidas.

- Em nossa escala, foi quem inventou os aceleradores de partículas tonto. Com eles podíamos criar matéria, mas vida, não.

- Pôrra, como isto é excitante! Mas continuamos os mesmos, quero dizer, tu e eu continuamos homens não?

- Homens não. Somos deuses.

-Mas continuamos mortais...

- Então descobrimos que os deuses são mortais.

- Mas a Nice me espera em casa, vou chegar, beijá-la, dormir...

- Esta noite ela dormirá com um deus.

- Não brinque assim! A vida sempre gerou novas vidas.

- A vida sempre reproduziu a vida e tu sabes bem disto. Criar é uma coisa, replicar é outra.

- É... Mas ainda me sinto um homem...

- Mas não és; desculpe a pompa e circunstância, porém nós transcendemos a condição humana.

- Como assim?

- Pense grande! A vida não é mais uma singularidade que aconteceu ao acaso em um canto do universo. Ela apareceu aqui, novamente, por nosso engenho, por nossas mãos.

Algo os perturbou; olharam para fora, a chuva havia cessado.

- Mas ainda somos seres vivos, cara.

- Sim, mas com o poder de criar vida!

- E o que tu achas que isto muda em nós?

- Muda nossa essência.

- Olha, vou te dar um exemplo: se amanhã eu herdasse uma fortuna, isto me faria um milionário. Certamente eu mudaria em muitos aspectos, mas ainda assim seria um ser humano.

- Seria.

- Eu mudaria meu modo de vida, até de pensar...

- Estás simplificando o que já é simples. Não adquiriste algo novo, mas sim criaste uma vida, te tornaste um deus.

Pediram mais bebidas e esperaram calados enquanto o garçom as trazia.

- Fala sério, achas que eu não sou mais um ser humano?

-Acho. Tu és um ser divino. Eu também sou.

- Mas por quê? Como fundamentar esta afirmação?

- Em nossa civilização, até o dia de hoje, achava-se que uma vida não poderia criar outra vida, somente um deus o poderia fazer. Era cultural, isto. Filosófico. Nós acabamos de criar uma outra vida, então não somos seres humanos, somos seres divinos.

- Insisto que ainda sou um ser vivo.

- Está bem; és um ser vivo divino.

- E continuo não sendo imortal.

- E quem te disse que deuses devem ser imortais? Na mitologia nórdica os deuses morrem ao final de sua saga. E Jesus morreu crucificado.

- Mas ressuscitou.

- Mas antes morreu meu caro. Portanto um deus pode morrer. Um deus morre.

- Mesmo ressuscitando depois?

- Tanto faz. Morreu, morreu. Se ressuscita ou não é outra história.

- Que confusão. Por que começamos a falar disto?

- Ora, esta é boa! Por causa do ECV-2A!

-Quis dizer de imortalidade.

- De imortalidade não; de divindade.

- Correto, somos divinos então. E esta gente aqui no bar não sabe que há dois deuses entre eles.

- Não têm como saber. Estás certo, não sabem.

- Então pode ter havido outros deuses entre nós e os ignoramos por completo?

- Assim como colocas sim, pode ter havido; mas não acho provável. De uma ou outra maneira a humanidade acabaria por saber.

- Por quê?

- Por que é algo grande demais; a notícia do fato acabaria por vir à tona. Este algo mudaria a humanidade.

- Nós vamos mudar a humanidade?

- Muito provavelmente.

- Por que somos deuses?

- Não, por que o fato em si transcende todas as idéias de natureza e humanidade que tivemos até hoje. Mudaremos o porvir.

- Mal posso esperar a hora de contar para a Nice!

- No nosso caso eu esperaria um pouco mais.

- Tu não vais contar para a Bete?

- Ainda não. E temos de pensar no Dr. Johnson também.

- O Dr. Johnson vive se embebedando por aí.

- Não importa. Ou melhor, facilita. Mas temos de pensar em como agir com ele.

- Patentes?

- Isto também.

- Diga-me, será que não explicamos apenas um processo, conseguimos reproduzir um processo, só isto?

- E achas pouco? Isto nos apartou da humanidade!

- A coisa toda está muito no início, não sabemos como ela irá evoluir.
Teremos de esperar, trata-se da evolução de um... Poderá demorar séculos!

- Ambos conhecemos bem engenharia genética, podemos acelerar o processo.

O homem mais baixo passou os olhos sobre o bar. Via uma imensa planície à sua frente.

- Me diga outra coisa; achas que vamos mudar a humanidade para melhor ou para pior?

- Não sei. – O homem alto sorriu. - Não sou onisciente.

- Como um demiurgo?

- Sou um demiurgo mas não uma Sibila. Nem ao menos sei se sou eterno.

- Bom, imortal tu não és.

- Claro que não, cara! Será que ainda não sacaste?

-Saquei. Garçom, mais um chope pro divino aqui.