PALLADIO

segunda-feira, janeiro 26, 2009

SOBRE URBANISMO - PARTE I

Arte Urbana, Projeto Urbano ou Urbanidade?
por Pierre Lucain




Este artigo saiu na l’architecture d’aujourd’hui 217, de outubro de 1981 e traduzo-o aqui e agora porque de certa forma ele reflete o debate que tínhamos naquela época sobre Urbanismo, Brasília e a Carta de Atenas que, por diversas contingências, prolongou-se até os dias de hoje no nosso meio profissional. Informo que Pierre Lucain é um arquiteto belga que escreveu na AA até mais ou menos 1999, sendo que depois eu o perdi de vista (ou de revista).

Por um longo tempo os arquitetos tiveram uma visão subjetiva e estreita da cidade, que refletia simultaneamente suas preocupações do momento, suas aproximações muito particulares com os problemas que lhes eram colocados e as incertezas das modas que se sucediam umas às outras com crescente rapidez. As vastas perspectivas Haussmanianas e o estilo neoclássico do século retrasado foram veementemente rejeitados pelo planejamento funcional dos movimentos modernos, que por sua vez foram questionados por outros movimentos mais ligados a questões político-sociais e ecológicas da sua época. Estes típicos movimentos dos anos sessenta, influenciados pelo pós-modernismo, foram levados a uma visão romântica e literária da cidade, visão esta cujo resultado final foi a construção de umas poucas “unidades de vizinhança” suburbanas de classe média (aqui Lucain refere-se provavelmente aos membros do movimento norte-americano "New “Urbanism”, autores da "Charter of New Urbanism"; lembro por oportuno que os arquitetos modernistas tinham uma real preocupação com a desigualdade social de sua época e que sua luta maior era pela moradia digna, universal e sabiamente desenhada, como dizia o Giancarlo de Carlo).

Alguns conceitos desses movimentos eram contraditórios entre si, outros se complementavam, mas todos eles falhavam no reconhecimento da interdependência dos fenômenos urbanos com os fatos históricos, geográficos, econômicos e sociais locais. Certa ingenuidade e mesmo uma razoável confusão prevaleciam quanto ao conhecimento da natureza dos problemas da cidade em questão e o realismo das soluções possíveis. Esta desordem e esta confusão explicam bem o fracasso e a falta de credibilidade desses movimentos perante os governantes e a opinião pública.

Como é possível justificar-se as teorias dos CIAMs quando elas ignoram questões tão elementares como a propriedade do solo? Como é possível sustentar-se um planejamento conciliatório pós-moderno quando este nega romanticamente a luta entre os diversos interesses que se constitui na força motora da dinâmica urbana? Como é possível acreditar-se no historicismo e na reconstrução da cidade européia quando os defensores deste movimento proclamam gravemente que é preciso construir “cidades na cidade e cidades no campo”, o que consiste tanto em um pleonasmo quanto em uma impossibilidade física. Evidentemente não se espera que arquitetos tenham um conhecimento profundo das estruturas dos assentamentos humanos e de seus mecanismos de gestão; no entanto uma noção melhor sobre estas matérias os ajudaria a perder suas ilusões, principalmente aquelas que os fazem acreditar que é possível desenvolver um ambiente urbano cheio de vida sobre uma parcela de solo virgem, simplesmente pela combinação dos elementos constitutivos de uma cidade histórica. (Pierre Lucain refere-se provavelmente às correntes “historicistas” do urbanismo pós-moderno que apareceram nos EUA na segunda metade do século XX ( p. e. a de Robert Frost), mas que eram em grande parte importadas da Europa, através de arquitetos como os irmãos Leo e Rob Krier, Denise Scott Brown e mais remotamente, Camillo Sitte; quanto à luta entre interesses, esta é inerente à diversidade dos assentamentos humanos, o que leva ao confronto mas também à coexistência entre as diferentes classes sociais).


Há de fato, nos tratados de arquitetura, uma extraordinária confusão entre ambientes urbanos já existentes (cidades que surgiram e cresceram espontaneamente) e ambientes urbanos a serem criados; as características de uns são automaticamente aplicadas aos outros e vice-versa.
Obviamente cidades espontâneas (1) e cidades novas ou novos subúrbios têm vários aspectos em comum, mas seus problemas intrínsecos são fundamentalmente diferentes. Os da primeira incluem renovação urbana, desenvolvimento de novos bairros ou controle de tráfego, enquanto que os da segunda estão mais centrados no planejamento, no desenho da paisagem urbana e nos meios de transporte público (vale relembrar aqui o impacto mortífero que teve o automóvel sobre as cidades históricas).

Os centros das cidades antigas, que foram formados e estruturados ao longo de vários séculos, se constituem em entidades muito mais complexas do que os centros de cidades novas e, ainda que bem planejados, tal fato não significa que esses aceitarão necessariamente bem o transplante de certos elementos chave dos antigos centros e que assim a complexidade urbana, da qual falamos, seria automaticamente reconstituída
(lembro-me na hora, como maus exemplos, da “Piazza D’Itália” de Charles Moore, que beira o pastiche e a galhofa e também da sua descendente burlesca projetada pelo arquiteto carioca Paulo Casé no Bar 20, em Ipanema, RJ; mas saindo do campo da farsa, o grupo do "New Urbanism" tentou algumas experiências com pequenos núcleos suburbanos, sem muito sucesso).


Em 1937, quando Le Corbusier trabalhou em um plano para a recuperação de uma área decadente no centro de Paris
(o “Plan Voisin” para a “l’îiot insalubre nº 6”, ou seja, o “Marais” e adjacências – adjacências estas nas quais ele incluiu a “Ille de La Cité”, a “Ille de Saint Louis”, o “Boulevard Saint Germain”...), aproveitando então um pedaço de sua “Ville Radieuse”, que poderia muito bem ser construída no campo aberto (aliás, LC a reaproveitaria mais tarde em seu plano para a cidade de Bruxelas). Igualmente, várias décadas depois, Mies van der Rohe também ignorou completamente o contexto da vizinhança, e mais, a relação espontânea que esta vizinhança mantinha com as outras tessituras urbanas do lugar, para projetar o campus do “Illinois Institute of Technology”, em Chicago.

Estes são exemplos extremos, mas em uma menor escala a sede da UNESCO em Paris (Breuer, Nervi e Zehrfuss, 1958), o edifício Thyssen em Düsseldorf (Helmut Hentrich, 1960), ou a prefeitura de Boston (Paul Rudolph, 1963), para mencionar apenas uns poucos exemplos, foram todos eles projetados fora do contexto de suas vizinhanças; na verdade eles são perfeitamente intercambiáveis e poderiam ter sido construídos em qualquer local de um novo bairro (2). Ao contrário, sob a influência do historicismo pós-modernista é cada vez mais freqüente, especialmente durante os últimos anos, que ambientes urbanos antigos (ou antiquados) sejam reconstituídos dentro de novos empreendimentos imobiliários. Os resultados são igualmente lamentáveis

Esta confusão é menos aparente em projetos de grande escala quando são realizados dentro dos centros de grandes metrópoles tais como o Lincoln Center em Nova York ou a nova Rua Arbat em Moscou, o “Les Halles”, em Paris, ou a recuperação dos centros urbanos de Boston e Baltimore. (A bela Rua Arbat foi a principal artéria da Moscou Czarista e a Nova Arbat é uma via moderna paralela à primeira, que interliga os principais “skyscrapers” da Moscou Soviética. Quanto ao Lincoln Center, considero um equivoco conceitual retirar do espaço público diversas funções da cidade para colocá-las dentro de um complexo privado, aliás, como se faz em São Paulo nos condomínios habitacionais verticais e nos centros empresariais). Aqui a grande extensão destas operações urbanas acaba por dotá-las de uma autonomia formal e espacial que libera os seus projetistas de restrições devidas ao contexto (exemplo: a Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro). De qualquer maneira, estas novas formas urbanas, quaisquer que sejam as suas morfologias, com o tempo se acomodam ao sítio e finalmente passam a fazer parte do lugar.

UMA CERTA MIOPIA

Tal confusão entre meios urbanos espontâneos e planejados também pode ser explicada pela posição que os modernistas tomaram com relação à cidade então existente, que eles consideravam como um ambiente de indecifrável complexidade ou de incompreensível desordem. Gropious falava de uma “caótica desorganização de nossas cidades” enquanto Wright escreveu que “olhar no mapa de qualquer cidade grande é como olhar na secção de um tumor” (3). Le Corbusier foi além, discursando sarcasticamente sobre os riscos envolvidos na formação dos tecidos urbanos (o caminho dos asnos) e sobre a necessidade da destruição das ruas. O CIAM terminou por declarar (item 71 da Carta de Atenas) que “a maioria das cidades que haviam estudado ofereciam no presente uma imagem de caos e anarquia”. A cidade que os modernistas unanimemente condenavam não era nem a cidade medieval, nem a renascentista, mas as aglomerações resultantes das enormes migrações urbanas do século XIX, anárquicas e incontroláveis, mais incompreensíveis ainda para eles, pois que baseavam suas críticas em “impressões”. (Neste ponto Lucain está coberto de razão, pois a má formação da cidade industrial já havia sido criticada por ninguém menos que Friedrich Engels, Karl Marx, Robert Owens, Charles Fourier, John Ruskin, William Morris, Tony Garnier, Camillo Sitte, Ebenezer Howard, e por aí vai). A postura crítica “impressionista” se explica também pelo movimento anti-urbano próprio dos países anglo-saxões e por uma vontade que os modernistas sempre tiveram de responder a questões complexas com soluções nas quais a simplicidade garantiria o seu funcionamento (agora Lucain se esquece de dizer que o anti-urbanismo foi principalmente norte-americano. Conforme Françoise Choay, os europeus que criticavam as cidades eram ainda assim marcados por uma longa tradição urbana; já a tradição norte-americana estava ligada à imagem de uma natureza virgem vinda da época heróica dos “pioneiros” – ao crescimento da cidade industrial correspondeu a nostalgia da pradaria e ao aparecimento de uma violenta corrente popular anti-urbana).

O ponto de vista dos modernistas sempre se deparou com movimentos de oposição, sumariamente desqualificados por eles como retrógrados ou tradicionalistas. Este foi um sério erro de avaliação, agravado pelo fato de que desde quando as teses sobre a cidade funcional estavam sendo desenvolvidas, os tais movimentos de oposição, que absolutamente não eram todos conservadores, fizeram pesquisas sobre a natureza e sobre as estruturas ou os mecanismos dos fenômenos urbanos.

Os resultados destes estudos teriam permitido aos modernistas corrigir sua falta de realismo e adquirir uma melhor credibilidade junto ao público. O livro escrito por Parks e Burguess, “A Cidade” foi publicado três anos antes da fundação do CIAM (1928) e sete anos antes que a “Carta de Atenas” fosse elaborada. Este trabalho e outros publicados mais tarde, expõem a heterogeneidade das estruturas sócio-econômicas de uma grande cidade norte-americana e sua lógica intrínseca, enquanto o CIAM estava reduzindo todas as funções urbanas à apenas quatro delas. É relevante, entretanto, notar que o CIAM esqueceu-se da principal função, a que é a força motriz de qualquer dinâmica urbana, a função de troca. (Acho que aqui Lucain se enganou ou esqueceu-se de mencionar que, como característica da "urbs", em primeiro lugar vem sempre a função política, surgida com o crescimento da população das vilas neolíticas e a conseqüente necessidade de organização social, da divisão do trabalho e de controle do grupo – não faltam às primeiras cidades da humanidade ruas, celeiros, habitações, um palácio ou um templo, ou ainda ambos, complementando-se no exercício do poder político; as aldeias do neolítico tinham habitações e armazéns, ou seja, efetuavam pelo menos trocas comerciais, mas não contavam com os palácios e templos das "polis").

Geógrafos e sociólogos que estudaram os fenômenos urbanos no mesmo período chegaram a uma concepção importante; a da globalidade urbana, da abordagem global dos fatos. Por eles a cidade se construía por si mesma em sua totalidade e esta totalidade era a sua razão de ser. Esta apreensão global
é mais interessante, pois pode ser usada para definir o conjunto das características dos fenômenos urbanos, notadamente aqueles pertencentes à heterogeneidade espacial, à estrutura radial, à hierarquia das formas e das funções, aos diversos movimentos contínuos ou cíclicos que geram o crescimento urbano e determinam o ritmo de sua evolução, o que permite a execução de planos urbanos melhores estruturados.
(Justiça seja feita aos modernistas – se sua definição de plano urbano é muito simplista, a dos geógrafos e sociólogos de Lucain é para lá de complicada).

Rossi não estava enganado quando escreveu no final de sua longa dissertação sobre a maneira de lidarmos com a geografia e a estética da cidade, que: “o elemento fundamental a ser retido da concepção da cidade como totalidade é a idéia de que podemos nos aproximar de uma compreensão desta totalidade estudando suas diferentes manifestações e a maneira como elas se comportam (4). A aproximação de Rossi não é aquela de um técnico, mas a de um arquiteto para quem a cidade é “uma arquitetura”, ou seja,” uma criação inseparável da vida dos cidadãos e da sociedade na qual foi produzida”.

Aproveito esta espécie de pausa no artigo para chamar a atenção que em nenhum momento foi colocado que uma parte considerável dos habitantes das cidades do terceiro mundo é constituída pelo proletariado lumpem (talvez pela origem de primeiro mundo de Lucain), que frequentemente são os seus reais construtores e que depois de terminada sua tarefa vão formar núcleos habitacionais com a consequente concentração de pobreza e desemprego nas precárias periferias semi-urbanas para além dos subúrbios da classe média, limítrofes aos campos vizinhos, ou em terrenos situados em áreas geologicamente instáveis, várzeas inundáveis, etc. Ao contrário das cidades dos países centrais do capitalismo, é este o principal problema urbano
das cidades dos países em desenvolvimento.

UMA OBRA DE ARTE

Se a arquitetura ou a cidade se constituem em “objetos humanos por excelência” (5) elas são para Rossi, principalmente, obras de arte. “Nenhum estudo urbano pode ignorar este aspecto da questão” (4). Além disto, uma obra de arte pode ser compreendida tanto em sua totalidade quanto em seu contexto.

A idéia de uma cidade-obra-de-arte não é nova; ela foi inicialmente colocada por Sitte com muito mais realismo do que demonstrado por Rossi. A “A Cidade é uma Obra de Arte”, de Sitte exprime não só a sensibilidade de um esteta diante de outra forma de arte que é a paisagem urbana, mas também a importância social desta arte que “exerce quotidianamente e a cada hora sua influência sobre a massa popular, enquanto que o teatro e o concerto só são acessíveis para uma minoria afortunada” (6). Esta afirmação de Sitte mostra que ele, como Rossi, estão conscientes que a estética urbana não pode ser uma questão de “arte pela arte”, mas que tudo na cidade – e esta é uma das características do fenômeno urbano – tem uma razão de ser e deve ser exprimido tridimensionalmente. (Acho que há aqui um pleonasmo - todo artefato de que se constitui uma cidade é tridimensional, naturalmente).

“Toda função só é percebida através da forma”, escreve Rossi, “a forma é o que permite o fato urbano”, dito ao qual Bardet acrescentou; “A cidade é uma obra de arte na qual gerações de habitantes trabalharam juntos, acomodando-se em maior ou menor grau ao que já existia antes deles” (7). Sitte, Bardet e Rossi estão de fato perfeitamente conscientes de que a estética urbana não é uma “questão de “arte por arte” e de que as formas urbanas “o casaco arquitetônico que a arte urbana tem sucessivamente tomado por empréstimo"(7) são meramente a expressão deste “ser coletivo” (7) que é a população Urbana. "Todas as funções só são visíveis através de uma forma", escreve Rossi, salientando que é através desta forma que o artefato urbano continua a existir. (fica patente nestes últimos trechos, a admiração do nosso amigo Pierre Lucain por Aldo Rossi. Depois da deconstrução da Carta de Atenas pelo “Team 10”, novos enfoques sobre a cidade, muitas vezes contraditórios entre si, surgiram entre os urbanistas do pós-guerra – os metabolistas japoneses, o Archigram, Aldo Rossi e a Tendenza, Manfredo Tafuri, Ernesto Rogers, Vittorio Gregotti, José Lluis Sert, Oriol Bohigas, Leon e Rob Krier, Collin Rowe, Denise Scott Brown, Piet Blom, Herman Hertzberger; para mim as teorias de Aldo Rossi tiveram o mérito de desmascarar, ainda que involuntariamente, a picaretagem populista/neoliberal de Venturi & Rauch).

(Continua).