PALLADIO

terça-feira, dezembro 19, 2006

Simetria

A simetria (o espelhamento de uma forma segundo um eixo ou plano) é praticamente um elemento exclusivo dos seres vivos e de seus artefatos ou ainda, das criações intelectuais dos homens; isto acontece, pois os primeiros são objetos designóides* (cf. Richard Dawkins), os segundos originados de um design, consciente ou não, materializados por mãos, patas, bicos, etc., e os terceiros de estruturas teóricas como matemática, geometria, física, química, etc. Já nas formações inertes da natureza, (o mundo mineral) que não são derivadas de um projeto e que estão perenemente expostas ao desgaste pela força da gravidade, pelos terremotos, pelos ventos, pelo clima, a simetria é inexistente, pelo menos ao nível do olhar humano.

Mas por que esta particularidade nos seres vivos? Segundo Jacques Monod
isto é devido à teleonomia, a informação (um “projeto”) armazenada dentro de um ser vivo que orienta a morfogênese, o processo de moldagem de sistemas biológicos; assim, me parece evidente que, no decorrer da evolução das espécies desde uma molécula replicadora primitiva até o Homo Sapiens Sapiens, somente as forças externas da natureza e as funções vitais dos seres vivos impediram que estes fossem totalmente simétricos, pois pela economia da engenharia biológica não haveriam motivos para a diferenciação formal das partes.

Desta maneira, podemos observar que a quase totalidade dos seres vivos é vermiforme, ou seja, a boca fica em uma extremidade do corpo e o anus em outra, o que é funcionalmente evidente. Quanto à simetria, observemos, por exemplo, um elefante (poderia ser um tigre, um macaco, um homem): seu corpo, se secionado por um plano horizontal não é simétrico, devido à força da gravidade e a necessidade de locomoção; se secionado por um plano vertical transversal também não o é devido à obrigatoriedade da relação boca - órgãos digestivos – anus (organização vermiforme). Já quanto a um plano longitudinal, a simetria finalmente aparece, simplesmente por que não havia razão para a diferenciação bilateral.

Assim, nos artefatos humanos, repetimos esta configuração – vejamos um pote; em relação a um plano horizontal, é assimétrico, pois a parte superior é aberta e a inferior fechada e em relação a um plano vertical é simétrico, pois não há razões para não sê-lo. Na arquitetura ocorre a mesma coisa embora, por nossa relação com as coisas vivas, a simetria parece-nos bela em si:
Acho que quando não há razão funcional para não sê-lo, a arquitetura deve ser simétrica em relação a planos horizontais e verticais, transversais ou longitudinais. Quando não for este o caso, devemos compor os elementos arquitetônicos assimétricos com harmonia e saber e o resultado será, certamente, tão bom quanto o anterior.

* [... os objetos designóides não são acidentais. Eles de fato foram moldados por um processo magnificamente não randômico, o qual causa uma impressão quase perfeita de design...]. Richard Dawkins, A Escalada do Monte Improvável - uma defesa da teoria da evolução, cap. 1, pág. 15.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

A Ressurreição de Lázaro

Quando Lázaro ressuscitou, toda a sua vida passada surgiu em seu espírito como um súbito clarão. Atordoado, ergueu-se do sepulcro familiar e olhou demoradamente as figuras ao seu redor, reconhecendo-as uma a uma. Em pé, diante do túmulo, enfileiravam-se sua esposa, já avançada em anos, seus dois filhos adultos, sua irmã, ressuscitada uns meses antes, um ou outro amigo mais chegado, o padre, com seus paramentos fúnebres, e os exumadores de nascituros. Saudou a todos com circunspeção e após assistir, silencioso, a uma breve cerimônia em sua intenção, abraçou e beijou os seus, ouvindo, em retribuição, as palavras compassivas e afetuosas usualmente dirigidas aos que retornam da morte.

Terminados os ritos de praxe, dirigiram-se todos, em grupo, para a saída do cemitério, onde os aguardavam solenemente duas limusines negras e dois ou três basbaques que por ali ficaram a espionar os rostos alegres que surgiam no portal barroco, juntamente com as coroas de flores. De lá, Lázaro foi levado imediatamente ao hospital vizinho para aguardar, por algumas semanas, a regressão de sua doença.

No hospital, seus dias transcorreram em relativa calma, embora, no início, sofresse com as dores atrozes, características de sua moléstia, dores estas medicadas com poderosos analgésicos que o deixavam sonolento e fatigado. Com o passar do tempo e sua progressiva melhora, passou a receber visitas diariamente; de sua família, dos seus amigos e, principalmente, do seu neto querido que, por estar a cada dia mais novo, já pouco saía de casa. Dulce, sua esposa, gostava de comentar com ele os fatos ocorridos antes da sua ressurreição; o Pedrinho, bem, já o vira com seus próprios olhos; os sobrinhos também haviam saído da escola e agora ficavam praticamente o dia inteiro em casa, cada vez falando menos e balbuciando mais – umas gracinhas! Ela mesmo, que desde que saíra do túmulo, morava na casa da nora, já se sentia mais disposta no dia a dia, começara a fazer pequenos passeios solitários pela vizinhança, pensava em sair às compras ou visitar amigas recém-exumadas.

Também Lázaro sentia-se melhor. Saíra da UTI, paulatinamente foram suspensas a monitorização do seu corpo e a alimentação parenteral; assistiu aliviado, a retirada das sondas e agulhas que tanto o incomodavam e mais – as dores abrandavam, o ânimo retornava, via-se, de repente, fazendo planos para o passado. Procuraria seu ex-patrão, o Doutor Trigueiro para por fim ao término de sua longa carreira na Engefiss S.A., onde haveria de começar, na década de quarenta, como um estagiário esperto e aplicado. O apartamento onde viveria com a Dulce fora readquirido por seus filhos, a mobília foi reavida e recolocada nos devidos lugares, só faltava mesmo a presença dos velhinhos, em breve para lá iriam os dois.

Quando Lázaro deixou o hospital, maio começava com seu céu de um azul sem mácula e seus dias frescos e ensolarados, seria o outono a estação que ele mais apreciaria dali para trás.

-“Ah! A mais bela época do ano...” pensava Lázaro enquanto seguia com Dulce para seu novo ex-apartamento. Naquele dia, ambos encaravam com confiança seu passado próximo e foi com alegria que iniciaram suas pós-mortes no lar que habitariam por trinta e dois longos anos, rejuvenescendo juntos e amando-se com crescente paixão, conforme o tempo regredia. E assim, Lázaro acompanhou o renascimento dos seus pais e sogros (que saudades do Pedrinho!), a adolescência e depois a infância dos filhos até o seu desaparecimento, o dia inesperadamente belo de seu casamento com a Dulce, linda de viver em seu branco vestido de noiva.

Depois deste dia inesquecível, separaram-se, Dulce voltou para a casa dos pais e Lázaro foi para o quarto-e-sala da Avenida Gerbóia. Mas, mesmo assim, ainda se viam bastante, tinham longas conversas, namoravam e faziam amor no fusquinha do Lázaro – o síndico do seu prédio era rigoroso e moralista – até que, já na adolescência, foram cada um para o seu lado e não se encontraram mais; felizmente, para os dois, o desaprendizado constante não os deixava preocuparem-se com o passado ou sentirem saudades do futuro.

O tempo continuava a voltar. Dulce saiu do ginásio e entrou para um colégio de freiras e, não tendo mais seus filhos para cuidar, começou a brincar com bonecas. Lázaro começou a jogar disputadas peladas com os outros meninos da sua rua e depois, bola de gude ou peteca. Tobby, seu fox-terrier, reviveu e foi seu constante companheiro de aventuras e travessuras até o começo. O dono, a cada ano que desfazia, ficava menor e mais deseducado; colecionava gibis, – os livrinhos pornográficos haviam ficado para frente – modelos de aviões e, mais cedo, de automóveis, álbuns de figurinhas. Em seguida saiu da escola e, brincando com os amiguinhos, começou sua jornada para o fundo da infância, que o conduziria, em seu final, ao nada de onde saíra, no início.



Euclides Oliveira

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Notícias da Terrinha.

Li o número de outubro da l’architecture d’aujourd’hui sobre Portugal, que procura aferir como que a nova geração de arquitetos portugueses lidou com a herança cultural dos mestres do modernismo regionalista como Álvaro Siza, Gonçalo Byrne, etc. Enfim, trata-se ali de averiguar a influência sobre a produção arquitetônica que tiveram a queda da ditadura Salazarista e o ingresso de Portugal na Comunidade Econômica Européia, a febre desreguladora neoliberal, a entrada, no país, de arquitetos de outras nacionalidades e a explosão do número de profissionais formados em suas faculdades.

A geração da "Escola do Porto" (muito influenciada por Alvar Aalto) soube incorporar, com sabedoria, as tradições construtivas seculares de Portugal com o racionalismo europeu da primeira metade do século passado (aliás, como já o havia feito bem antes, no Brasil, Mestre Lúcio Costa). Chegada a era dos “pop-stars” na mídia arquitetônica, o próprio Siza foi alçado à condição de “estrela” do sistema, posição esta que ele nunca assumiu com a convicção de muitos dos seus colegas de fama, não se apegou a um estereótipo a ser banalizado pelo mercantilismo e consumismo vigentes. Como exemplo cito, a seguir (sem tradução, pois o trecho é de certa maneira poético), um artigo de Wilfried Wang sobre o próprio, publicado na revista Domus, nº. 770, págs. 21/ 22.

[... How many “standard” components from a “high-tech” project have actually survived to see another building? Perhaps Siza’s designs are old-fashioned in that regard; perhaps they are part of a dying era. Perhaps his office’s attempt to use computer is only partial; perhaps his reliance on sketches betrays his true antiquarian manners. Perhaps my apology for the work of Siza’s office is misguided and hopelessly nostalgic. Perhaps my understanding of his work is completely idealized. Perhaps architecture – no, not perhaps: definitely architecture has seen its golden years. But I would contend that the work from Siza’s office and his countless collaborators have contributed to this late glory. Passion and faith in architecture are rare, are becoming rarer still…]

Evidentemente, na produção contemporânea dos arquitetos portugueses aparece (aliás, como em toda a parte) uma banalização do pitoresco, do original, surge o “kitsch glamourizado”, percebe-se a ausência de um Projeto consistente como foi o da geração anterior; a influencia da mídia e da volatilidade do mercado imobiliário, a colonização da cultura local pelos vizinhos ricos já fizeram os seus estragos. Voltamos à contradição – regionalismo cultural versus globalização -, assistimos novamente a perda do potencial transformador da arquitetura, a formação de um novo perfil das cidades com origem na especulação imobiliária. Tanscrevo, a seguir, alguns comentários de arquitetos portugueses sobre este assunto:

Nuno Grande nos diz que nos anos setenta e início dos oitenta [... a "inteligência" arquitetônica de Portugal se posicionou ideologicamente à parte da corrente dominante da arquitetura européia, distanciando-se tanto das tendências neo-liberais da construção civil quanto dos "lobbies" político-financeiros.... No entanto, embora a Escola do Porto tenha se envolvido neste debate (sobre habitação social e urbanismo) durante os anos oitenta, o desenvolvimento das cidades portuguesas foi deixado nas mãos de especuladores, agentes imobiliários e grandes grupos empresariais, quando não tocado por projetos urbanos importados de construtoras da Espanha, do Brasil, dos EUA e da Ingaterra que enfatizavam o seu "savoir-faire" em achar soluções fáceis para programas ambiciosos: enormes edifícios de escritórios,
conjuntos complexos para negócios, parques temáticos, shopping centres...].

Tiago Mota Saraiva depois de constatar que [... Nos anos setenta a arquitetura portuguesa tornou-se conhecida.... pela habilidade de juntar as lições aprendidas do Movimento Moderno com a qualidade das técnicas de contrução locais testadas e provadas através dos séculos...],
finaliza assim seu artigo sobre ser ou não ser "global": [...trinta anos atrás, o nº 185 da L'Architecture d'aujourd'hui (1976) testemunhava os arquitetos portugueses sendo influenciados por uma das mais importantes revoluções sociais e políticas da Europa no século XX (a revolução dos cravos). Hoje, quando aquele progresso social revolucionário foi esquecido e parcialmente destruído, a prática arquitetônica portuguesa espalhou-se pelo mundo mas fortemente marcada pelo processo de globalização...].

Já André Tavares se refere à "crise do crescimento" [... Apesar do planejamento urbano e territorial em Portugal ter sido gravemente afetado pelos efeitos colaterais do liberalismo moderno, graças a reputação internacional de alguns arquitetos portugueses as faculdades de arquitetura em Portugal estão lotadas de estudantes. Face ao poder dos investidores, os arquitetos são incapazes de mudar esta situação; será sempre este o caso?...]; e continua:
[... Incapaz de "salvar o mundo" o arquiteto tenta salvar seu prestígio reduzindo seu campo de ação, evitando o corriqueiro, aspirando por fama internacional e pontuando a paisagem com construções insólitas. E com isto suas ações não transformam nenhuma cidade, nem eles propoem novas maneiras de viver-se... Neste meio tempo, eles abandonam seus poderes a outros atores sociais em comunicação direta com os investidores e o Poder Público....].

Um ícone da arquitetura globalizada em Portugal é a Casa da Música na cidade do Porto, de Rem Koolhaas (a quem sempre considerei um espertalhão, com muito talento mas oportunista). Hoje em dia, qualquer prefeito quer ter o seu "efeito Bilbao" e, aproveitando-se do fato, o Koolhaas baseou o seu projeto na célebre gravura de Dürer "Melencolia" onde, ao lado de uma figura ou gênio da tristeza existe um volume geométrico denominado rhomboedhro, um poliedro truncado que serviu de modelo para o envólucro de metal da Casa da Música, sapecado meio que de qualquer jeito nos arredores de Oporto. Horrível.

Para terminar, é necessário fazer-se justiça ao trabalho de um italiano em Portugal; refiro-me ao projeto do Centro Cultural de Belém em Lisboa, do Vittorio Gregotti, que tão bem se adapta ao contexto local (esteve exposto aqui no Brasil na última Bienal de Arquitetura). Ele nos mostra como projetar sem agredir o meio ambiente e sem cair no vernacular, realizando um projeto contemporâneo inserido na escala e no “clima” da cidade velha. Como disse o Álvaro Siza, [... a polêmica que o projeto inicialmente suscitou foi substituída pela calma aceitação do monumento na cidade e a descoberta de uma das mais interessantes obras de arquitetura do nosso tempo...].

Como podemos ver, ainda é possível projetarmos para uma comunidade e sua cidade, e não apenas para incorporadoras e construtoras ávidas de lucros fáceis com tipologias de arquitetura tanto sensacionalistas quanto vulgares.

Euclides Oliveira

domingo, dezembro 03, 2006

Por que a arquitetura de São Paulo é tão ruim?

Se temos bons arquitetos, por que a arquitetura da cidade de São Paulo é, de uma maneira geral, tão ruim? A resposta é o primitivismo do mercado imobiliário e a falta de cultura de nossas classes dominantes e “formadoras de opinião”. Algumas faculdades de arquitetura (umas três ou quatro) bem que tentam formar profissionais capazes de ir contra a “marquetagem” e o mau gosto vigentes, mas estes, pela selvageria da competição por trabalho existente no mercado, acabam por se diluir na mediocridade geral que é a face da produção arquitetônica atual.

Na década de 70 do século passado, imperavam nos edifícios para habitação multifamiliar os estilos neoclássico, “mediterrâneo” e neocolonial, além de um ecletismo de origem indecifrável nas habitações unifamiliares. Os projetos contratados com bons profissionais contavam-se nos dedos e até uma construtora mais progressista, a Forma e Espaço, encomendou projetos padrão, para serem repetidos “ad aeternum” a dois excelentes arquitetos paulistanos, não deixando de lado a visão de que projeto é um requinte ou, pelo menos, não necessário para cada edifício específico. Um desperdício.

Nas décadas de 80 e 90, corretores e marqueteiros assumiram de vez a direção da produção arquitetônica massificada, gerando estas centenas e centenas de monstrengos que enfeiam a cidade; é a “vontade do mercado”.
Eu me pergunto, as vezes, onde estão os edifícios habitacionais e comerciais projetados por Paulo Mendes da Rocha, Joaquim Guedes, Eduardo de Almeida, Jerônimo Bonilha, Décio Tozzi, Marcelo Ferraz, Ângelo Bucci e tantos e tantos outros? Devem existir alguns, mas muito poucos diante do inferno visual que nos assalta todos os dias aos sairmos às ruas desta cidade.

Se não podemos ter boa arquitetura, pelo menos deveríamos ter alguma ordem tectônica em São Paulo, mas não, quase tudo é permitido e aprovado pela administração municipal, inclusive a apropriação freqüente do espaço público por particulares. Moramos em edifícios cujas fachadas ou são como que embalagens de produtos à venda ou beiram o ridículo estético e a mediocridade absoluta e não temos, ao menos, a opção de espaços públicos agradáveis (com raríssimas e superlotadas exceções) para freqüentar, de ruas que formem um local que não sirva apenas para o engarrafamento do trânsito, de uma arborização urbana que traga de volta o canto das aves.

Como modificar isto? Sinceramente não sei; sinto que passamos por um processo histórico que, aliado à falta de educação de nossas elites econômicas, produz a realidade estética que está aí, diante de nossos olhos.
Educar ajuda; mas com a proliferação de faculdades de arquitetura que houve nas últimas décadas as coisas ficam bem mais difíceis. È isto aí.

Euclides Oliveira.