PALLADIO

quarta-feira, maio 20, 2009

ERNESTO SABATO

[... E penso se não será sempre assim, se a arte não nascerá invariavelmente de nosso desajuste, de nossa ansiedade e nosso descontentamento. Uma espécie de gesto de reconciliação com o universo tentado por esta raça de frágeis, inquietas e ansiosas criaturas que somos os seres humanos. Os animais não necessitam de nada disso; basta-lhes viver. Por que sua existência flui em harmonia com as necessidades atávicas. Para o pássaro bastam algumas sementinhas ou minhocas, uma árvore onde construir seu ninho, grandes espaços para voar; e sua vida transcorre desde o nascimento até a morte num venturoso rítmo que nunca é dilacerado pelo desespero metafísico nem pela loucura. Ao passo que o homem, ao se levantar sobre as patas traseiras e transformar em machado a primeira pedra lascada, instituiu as bases de sua grandeza mas também as origens de sua angústia; pois com suas mãos e os instrumentos feitos com suas mãos ele viria a erigir esta construção tão poderosa e estranha chamada cultura, iniciando assim seu grande drama: deixará de ser um simples animal, mas nunca chegará a ser o deus que seu espírito sugere. Será esse ser dual e desgraçado que se move e vive entre a terra dos animais e o céu de seus deuses, que terá perdido o paraíso terrestre de sua inocência sem ganhar o paraíso de sua redenção. ...]

SABATO Ernesto, A resistência, pag. 78, Companhia das Letras, 2008, São Paulo, SP.

OUTONO

De súbito,
Com a mão no trinco do portão,
Fui tocado pelo raio de um sol
Que vagabundeava
Entre as nuvens de abril.
Assim aquecido,
Desejei que aquele instante
Se tornasse eterno,
Imortal.
Mas uma brisa leve esfriou-me o corpo
E aquela nesga de luz
Foi-se com o vento do outono.

MUROS

No Rio de janeiro, sob um duvidoso pretexto ecológico, existe atualmente a proposta, por parte do Estado, de murar-e as favelas nos morros junto às encostas arborizadas, para impedir o seu crescimento sobre a mata. Há preconceito social flagrante nesta proposta, pois não se tomam providências contra condomínios e residências dos ricaços, que estão destruindo a Mata Atlântica e a paisagem costeira do litoral norte de São Paulo, desfigurando irremediávelmente seus costões com mansões de veraneio de luxo, "decks" e marinas. Evidentemente, no caso das favelas, as providências a serem tomadas terão de ser de ordem urbana e social, favorecendo, para as classes de menor poder aquisitivo, o acesso à habitação digna, sabiamente desenhada e bem localizada quanto aos meios de transportes, oportunidades de emprego e qualidade ambiental e da vizinhança.

Ao inverso, aqui em São Paulo são os muros dos condomínios dos ricos que se constituem em problemas públicos da maior gravidade, afetando desde a estrutura social e a convivência entre classes nas áreas urbanas até a relação física adequadamente dimensionada entre as cidades e os campos. Seu paradigma é Alphaville, em Barueri, um aborto urbanístico que já existe há décadas, falsa cidade para uma classe só, onde os pobres só entram como serviçais dos moradores ou como seus seguranças; possui comércio, serviços, administração, colégios e até universidades próprias e se deixarem, creio eu, contará no futuro com um exército particular e uma dúzia de F-15 ou Mirages de segunda mão, para defendê-la da "ralé".

O que acho mais grave nesta estória é que este tipo de ocupação fundiária espalhou-se por todo o estado de São Paulo; não existe mais cidade do interior, grande ou pequena, que não conte com vários destes empreendimentos, de Campinas à Valinhos, de São José dos Campos à Itupeva. O pior é que eles trazem consigo, além do preconceito e da segregação social inerentes à sua organização, problemas urbanos e ambientais tais como a grande extensão dos sistemas viários e de infra-estrutura urbana das cidades (há que atendê-los sempre, afinal abrigam os consumidores ricos), que têm de se estenderem mais e mais para os campos adjacentes. E assim vão estes assentamentos humanos "classe A" invadindo as áreas agriculturáveis e as matas, nativas ou não, que encontram pela frente, espalhando a poluição, o asfalto e a sua negação implícita da urbanidade pelo "hinterland" paulistano antes afeito apenas ao plantio e à colheita dos frutos da terra.