PALLADIO

domingo, abril 15, 2007

A Mulher do Bodum.

Iniciei meu curso de graduação em 1965, na Fauldade de Arquitetura e Urbanismo da antiga Universidade do Brasil, hoje FAU-UFRJ. O edifício da Faculdade, estalando de novo, ficava (e ainda fica) na Ilha do Fundão, juntamente com o complexo da Faculdade de Engenharia, ambos belos projetos do arquiteto Jorge Moreira e da equipe do Escritório Técnico da Universidade do Brasil. Naqueles tempos, a ilha era um fim-de-mundo, com os dois prédios, um alojamento de estudantes que ficava em um velho presídio desativado, um botequim que chamávamos de "candango" e mato, muito mato; a paisagem vista das vidraças da faculdade era tristonha, um cemitério de navios onde apodreciam velhos cargueiros do Lloyd.
Pois bem, devido a este afastamento da cidade, a diretoria da faculdade permitia que nós varássemos a noite nos atelieres de desenho (que eram muitos, para cada turma), para finalizarmos os trabalhos curriculares e foi numa "virada" destas que um colega nosso, veterano do quinto ano e meio amalucado, conhecido pelo estranho apelido de "Bodum",resolveu levar consigo uma prostituta(das bravas) para distraí-lo durante a noite atarefada. Raiada a manhã, o Bodum resolveu ir tomar um café na lanchonete para espantar o sono e deixou a moça com a incumbência de ir fazendo pinguinhos de nanquim com a "oxford" no jardim do seu projeto.
Não haviam se passado nem cinco minutos quando entrou na sala o regente da cadeira de "Grandes Composições", arquiteto reacionário e de produção eclética que gozava da antipatia de todos nós por sua rabujice perante tudo o que fosse "moderno" e por seu anti-comunismo feroz.
- Mas quem é a senhora? Indagou o mestre com visível espanto e indignação.
- Eu sou a mulher do Bodum! Respondeu a menina, resposta esta evidentemente infeliz, naquela situação.
- Pois vá chamar o seu Bodum imediatamente, que eu quero ter uma conversa com ele , replicou a besta-fera.
E foi assim que o "seu Bodum foi suspenso por meio ano e a FAU passou a ser fechada pontualmente às 18 hs, acabando-se nossa "sopa" de virar ali as noites de trabalho e farra.

sábado, abril 14, 2007

As Torres de Ohrn.

As Torres de Ohrn.

Na antiga cidade de Ohrn, ou Ohren, duas torres negras erguiam-se da cimalha de suas muralhas, guardando à noite o sono de seus habitantes; não eram elas guarnecidas, porém seu aspecto sombrio bastava para afastar os seres crepusculares que viviam a rondar, como lobos famintos de uma alcatéia, a cidadela. Assim, em seus quartos bem aquecidos, os burgueses de Ohrn podiam dormir tranqüilos, protegidos pelos noturnos gigantes que os guardavam daquele povo apenas pressentido, de sua fome adivinhada, de sua tristeza presumida.

Eram as torres de sólida construção, mas velhas, tão velhas que ninguém sabia de sua origem no tempo e nem haviam notícias do povo que as tinham erguido com blocos de duro gnaiss, rudemente talhados em pedreiras desconhecidas. Tão afeitos eram os burgueses aos seus negócios que de suas maciças presenças não se davam conta, enquanto atarefavam-se no mercado de Ohrn, nem mesmo quando o sol poente lançava suas longas sombras sobre a praça e trancados eram os portões da cidadela; mas tal desinteresse, em breve, haveria de mudar.

Em certa noite de abril o burgomestre insone, chegando-se ao balcão, viu que uma das torres desaparecera, ficando assim perdida a bela simetria, antes por todos ignorada. Ao amanhecer reuniram-se os burgueses na praça, para assustados, comentarem o acontecido. Que magia forte seria aquela? Ou mais seria obra de engenharia? Quem ou o que a levaria? E aonde (se possível fosse) teriam a torre escondido? Sem convicção ou fé resolveram então, esperarem pela noite e a nova madrugada para verem se tudo ao (para)-normal não voltaria.

Mas o mistério ficou, a torre não reapareceu. Desta manhã em diante, em todas as madrugadas, os assustados burgueses assomavam às suas janelas e varandas, a procurar pela torre que restara, conferindo sua necessária permanência (e orando pelo retorno da desaparecida). Desta maneira as noites tornaram-se mais longas e os dias mais curtos, enquanto que a angústia e o medo tomavam conta da pacata cidade; a ausência de uma das guardiãs de Ohren, causa de toda aquela assimetria, não saia da memória dos seus cidadãos.

Sete dias e sete noites assim passaram-se e então, o que era por todos temido, aconteceu; a sétima madrugada chegou sem a derradeira torre. Após a discussão de praxe na praça sobre o ocorrido, trancaram-se os burgueses em seus lares, aflitos, vulneráveis, amedrontados; velas foram acesas, orações nos cantos murmuradas, víveres estocados e armas azeitadas para protegerem-se dos seres crepusculares que fatalmente viriam despojá-los de seus bens e haveres.

Mas ocorria que a turba atrasava-se, os bárbaros demoravam; iam-se as noites, vinham os dias e os seres temidos não apareciam. Assim sendo, pouco a pouco, voltou a cidade ao normal, à sua ordem habitual; o mercado funcionava, a Bolsa fazia o pregão, havia nos cafés o aperitivo do meio dia, as noites eram vencidas sem sustos por sonos com sonhos sem culpa.

E então, aconteceu. Abertas as janelas numa gelada manhã invernal, viram os burgueses os seres crepusculares vagando silenciosamente pelas ruas, caminhando em hordas intermináveis em meio a branco e espesso nevoeiro.

De início, nada para si tomaram; passavam olhando o luxo das vitrines, as aldravas de ouro dos portões, os frontões de ornamentos rebuscados, como se aquilo não bem compreendessem ou que não lhes dissesse respeito; apenas para espanto dos burgueses, reviraram as latas de lixo e tiraram dali o seu repasto, que devoraram na beira das calçadas; chegada a noite (não se acenderam os lampiões) reuniram-se na praça os bárbaros e ali dormiram seu sono ameaçador.

Alma nenhuma da cidade de Ohrn atreveu-se naquele dia o seu abrigo deixar, portas e venezianas permaneceram trancadas, espiavam o povo pelas frestas das janelas, a multidão infinda que não terminava de passar. Então eram assim os temidos seres crepusculares? Esquálidos, de cinzas e de chagas cobertos, a moverem-se como marionetes em meio ao sepulcral silêncio que reinava nas ruas de Ohren? Dormiram cheios de pavor os burgueses nesta noite e quando tinham pesadelos era para o medo que acordavam, trancafiados em seus quartos abafados.

Pela manhã ouviram um breve burburinho vindo da praça e depois o silêncio. Horas se passaram sem novas sonoridades; teriam as criaturas abandonado a cidade sem nada levar? Um a um, alma a alma, corpo a corpo, foram deixando suas mansões os burgueses, dirigindo-se como de hábito, para a praça. Encontraram-na deserta, sem marca alguma dos maltrapilhos; mas ao erguerem os olhos para a torre da igreja acharam-na diferente; o que seria, o que estaria... Ah! Faltava-lhe o sino! Então era assim, as criaturas roubaram o sino de Ohrn, sua Matriz ficara emudecida.

Mas para que o desejariam? Não tinham igreja nem torre sineira onde pendurá-lo pudessem (tinham apenas sua fé); o que com ele fariam? Fundir-no-iam para com o bronze ficar? Mas de coisas mais ricas de sobra as tinha a cidade, quantas eram peças e móveis preciosos que em Ohrn abundavam! Todas valiosas e mais fáceis de as levarem? Bem, antes assim. Uma guarda noturna formada foi por velhos e desajeitados criados para patrulharem as ruas da cidade e o alarme soarem se os seres crepusculares voltassem, enquanto melhor solução não se achasse para a ausência das torres guardiãs. Mas como seria dado o alarme, se o sino roubado fora? Espantaram-se novamente os burgueses de Ohrn; seria o fato uma esperteza dos tais seres? Sem torres que os guardassem ou sino que os alertassem como ficariam, obesos por demais que eram e muito pouco afeitos às práticas guerreiras, militares?

Tomaram outras providências então; um mensageiro despachado foi e dias depois, célere, voltou trazendo consigo os Cavaleiros Templófagos, negros em suas pesadas armaduras de couro e aço, suas faces ocultas por bicos de metal perfurado. Um círculo formaram na praça com os seus corcéis e imóveis esperaram o que havia de vir.

Adiantou-se então um burguês, o mais venerável da cidade, e com tremelicante voz contou-lhes que haviam, que horror, perdido as torres do burgo, suas ancestrais protetoras e o sino da Matriz, que do perigo os alertava. Quem ou o que os defenderia então dos seres crepusculares logo após o paredão? Por acaso os cavaleiros e a que preço, não tomariam para si a missão deste pequeno e pobre burgo defenderem? E qual seria sua comissão?

Fez-se então o silêncio em primeiro; depois, o mais alto dos Templófagos falou que sim, que para defenderem seu burgo tinham vindo, para os protegerem dos miseráveis estavam ali, que tal tarefa poderiam fazer.

- Não queremos vosso ouro disse, sempre a pelejar, dele não aproveitaríamos um grama sequer. Mas ao invés do ouro queremos o poder sobre Ohren e como garantia, o casamento com vossas virgens; tornando vossas filhas nossas damas, uma nova aliança estabeleceremos convosco e um forte vínculo com vossas famílias.

Retiraram-se então os burgueses para a Matriz e fechadas as portas confabularam; “e nossos acordos, nossas promessas, nossos negócios comerciais, selados pela união de nossos filhos, como ficarão? Nossas famílias, como receberão os Templófagos, nossos devires, como serão?” - ponderavam. Uma sábia voz então se alevantou dizendo em alto e bom som:

- “Ó tolos, sabemos que tal tropa avançará em nossos cofres, além de levarem nossas filhas; mas que escolha teremos nós? Por acaso preferis que o povo crepuscular as leve para suas cabanas ou para forcejar nos campos”?

- “Tem razão o sábio” disseram, “melhor entregarmos nossas filhas e nosso ouro para cavaleiros do que para o povaréu, o sábio tem razão”. Combinado o que havia de ser feito, saíram os burgueses para a praça e com os Templófagos selaram a nova aliança.

Com o passar dos anos, as palavras que o sábio dissera foram se confirmando; os cavaleiros altos impostos impuseram sobre as famílias de Ohrn, casaram-se com grande pompa com suas filhas, embebedavam-se e comiam até estourarem em banquetes descomunais, tornaram-se gordos e lentos, mal cabendo nas armaduras faiscantes e limitaram seus deveres militares a uma cavalgada vagarosa em torno das muralhas do burgo, a cada seis ou sete dias, para afastarem os famintos seres dos portões da cidade. Os filhos por aqueles gerados eram cuidados por mães maldizentes de seu destino, que lhes impusera no caminho da vida, homens fedorentos que não sabiam sequer comerciar na praça. Em Ohrn começava-se a conspirar, os jovens burgueses que sem esposas ficaram, por conta dos acontecimentos, fundaram e reuniam-se em uma sociedade secreta estranhamente denominada de “O Sino”, onde tramavam a expulsão dos Templófagos.

Afinal, em outra gélida noite de inverno, com a cumplicidade das esposas que lhes franquearam as portas, sorrateiramente os conspiradores entraram em seus lares e apunhalaram os maridos-cavaleiros, durante o seu sono profundo de bêbados saciados, apaziguados. Deixaram então as mulheres a cuidarem dos cadáveres e a lavarem o sangue dos pavimentos e dirigiram-se a praça de Ohren, onde fizeram uma imensa fogueira. Pouco a pouco os burgueses saindo foram de seus palacetes, dirigindo-se para praça, onde brindaram e dançaram pela morte de seus genros; os rapazes também dançavam faziam troças e desafios, “agora sim”, diziam “teremos viúvas como esposas, a vida gozaremos segundo as leis de Deus e dos homens”.

Repentinamente, alguém ouviu um som; outro também. Cessaram as festas e danças, nos cantos da praça apuraram-se os ouvidos e suspendeu-se a respiração. Não havia dúvida, era o sino de Ohrn que soava na escuridão.

São Paulo, Abril de 2007

domingo, abril 08, 2007

A Forma do Território

A seguir alguns trechos de "A Forma do Território" e outros, de Vittorio Gregotti:

- [... Para estudar-se as possibilidades de uma análise antropológica e geográfica da paisagem, os vários aspectos ligados à abordagem multi-dimensional do arquiteto com o meio ambiente têm de serem observados...]

- [... O arquiteto impõe a sua estética na vizinhança natural...]

- [...Os elementos responsáveis pela transformação da paisagem no tempo, compreendem variações climáticas e das estações, infra-estrutura dos colonizadores, a agricultura e fenômenos naturais como enchentes, etc...]

- [... Nosso começo é compreender que a natureza é transformada em culturas agrícolas para o homem aumentar a sua produção de bens às custas das características originais do terreno ...]

- [...Qualquer território, com a excessão dos desertos, tem uma explicação histórica porque determinados pedaços de terra foram usados ou não e nós estamos continuamente recriando a geografia através da nossa experiência e cultura...]

- [... Uma nova hipótese assume a paisagem no significado do seu conteúdo e com um mínimo de modificações...desenhar cartograficamente os valores do território tendo em vista a intervenção na geografia...]

- [...Existem elementos na paisagem que, por sua proeminência, entorno e implantação adquirem um caráter excepcional e um significado denso ...]

O trecho seguinte é extraído de uma conferência de Gregotti na "New York Architectural League":

- [...O pior inimigo da arquitetura moderna é a idéia de espaço considerado exclusivamente em termos de suas exigências econômicas e técnicas, indiferentes à idéia de lugar.
Segundo acreditamos, o ambiente construído que nos cerca é a representação física de sua historia e o modo como acumulou diferentes níveis de significado para formar a qualidade específica de lugar, não exatamente em decorrência daquilo que pareça ser em termos perceptivos, mas aquilo que é em termos estruturais.
...Na verdade, através do conceito de lugar e do princípio de assentamento, o ambiente torna-se a essência da produção arquitetônica; a partir deste ponto de observação, é possível vislumbrar novos princípios e métodos para o projeto, princípios e métodos que dão precedência à localização em uma área específica. Este é um ato de conhecimento do contexto que decorre de sua transformação arquitetônica; a origem da arquitetura não é a cabana primitiva, a caverna ou a mítica "Casa de Adão no Paraiso".
Antes de transformar um suporte numa coluna e um telhado num tímpano, antes de colocar pedra sobre pedra, o homem colocou uma pedra no chão com a finalidade de identificar um lugar no meio de um universo desconhecido, para que assim pudesse conhecê-lo bem e modificá-lo
...]

Além do evidente valôr que Gregotti dá à geografia e à paisagem, parece-me óbvio que o lugar tenha precedência sobre a arquitetura ou um assentamento humano. Nossos ancestrais nômades escolhiam um sítio sombreado e com água, ou em uma elevação, para sua segurança, e depois disto faziam ali suas tocas, ou erguiam sua tendas ou choças. Esta escolha visava não apenas à obter conforto material e segurança física mas também levava em consideração aspectos simbólicos ou mágicos que o protegessem dos maus espíritos e atraisse os bons. O mesmo valia para a agricultura; além do relevo e da hidrografia o homem, ao procurar um local fertil para semear e colher, baseava-se na sua visão do mundo e do cosmos, na sua relação com os vivos e com os mortos.

sábado, abril 07, 2007

O Limite de Chandrashekar

Em 2020 os povos da Terra ainda não tinham se habituado à descoberta, havia já uma década, que o sol, contrariando tanto a astronomia conhecida quanto as probabilidades de eventos físicos acidentais, havia entrado em colapso gravitacional e que, esgotando prematuramente o seu combustível nuclear, em seguida expandiria a sua coroa transformando-se em uma gigante vermelha para finalmente, segundo o limite de Chandrashekar, contrair-se se tornando uma nova anã branca na galáxia. Assim, o outrora denominado Astro-Rei estava se transmutando em uma pequena estrela brilhante, mas que antes disto queimaria os planetas próximos ao seu corpo ardente. A opinião de físicos, astrônomos e cientistas em geral era de que, pelo andar dos acontecimentos, o calor ainda naquele ano, tornaria impossível qualquer chance de sobrevivência da vida em todas as suas facetas, pois oceanos, mares e rios evaporar-se-iam formando uma camada de nuvens impenetrável à luz solar criando um definitivo “efeito-estufa”, quando então imensos incêndios consumiriam florestas e plantações, calcinando tudo o que se encontrasse sobre a crosta terrestre.

Após um período de estupefação geral, a humanidade caíra aparentemente em uma espécie de apatia fatalista, de uma aceitação melancólica e resignada do seu destino, embora continuasse a utilizar todas as fontes de energia disponíveis para refrigerar-se e a produzir toda espécie de aparelhos e geringonças para que isto se tornasse possível, trancando-se na atmosfera artificial de seus lares, fábricas e escritórios; no entanto os incêndios grassavam nos campos cada vez com maior freqüência, o gado morria nos pastos queimados, os corpos dágua evaporavam e a fome e a sede rondavam por toda a humanidade.

Na janela do seu apartamento em Botafogo, Mário olhava o panorama desolado aos seus pés; lojas fechadas devido aos constantes saques de alimentos e bebidas, ruas vazias, pois não havia sentido em desperdiçar-se combustível em automóveis e era impossível suportar-se o calor já de uns 60º C, o rádio e a televisão ligados naquela eterna espera por notícias (ou por um milagre). Pensava então na melhor forma de suicidar-se (junto com a namorada?), para não morrer de sede, fome, sufocado ou ainda queimado em algum inevitável incêndio. Tiro? Não possuía um revolver, nunca tivera armas em casa; o gás havia sumido faziam semanas; comprimidos, não os tinha nem havia jeito de consegui-los com o comércio saqueado e trancado. O jeito era saltar da janela, o que lhe dava arrepios, o salto no vazio, para o quê, para onde? Sacudiu a cabeça, tomou um gole da água avidamente racionada e foi dar uma espiada em Vera, que dormia no quarto, o corpo nu coberto de suor.

Mário sentou-se na beirada da cama; ela ressonava, dormiam agora doze, quinze horas por dia, naquele quartinho quente. Será que Vera saltaria com ele? Nunca indagara como ela gostaria de morrer, o assunto parecia ser tabu entre os dois. Puxa-vida. Gostaria ver os pais antes do fim, mas estes moravam em Jacarepaguá, não havia mais como chegarem até lá. Mas eis que toca na televisão (único contato com o mundo, pois os telefones já há meses haviam emudecido) a vinheta do telejornal; Mário arrastou os pés até a sala e caiu derreado, numa poltrona.

-... notícia recebida de nosso helicóptero Águia Dois, há batuque no morro da Mangueira, parece que a escola está descendo para o asfalto...

Mário sintonizou o rádio também, o noticiário estava no ar, a Mangueira descia as ladeiras, o povo fantasiado como podia, a bateria retumbando firme, comissão de frente, mestre-sala e porta-bandeira, a ala das velhas baianas rodando as saias, o puxador cantando um samba antigo. Correu para o quarto e sacudiu a namorada;

- Acorda, Vera, a Mangueira saiu...

- Mas o que...

- A Mangueira, Vera, a Mangueira desceu do morro!

Vera, estremunhada, enxugou o rosto com o lençol e sentou-se.

- O que você disse?

- Mangueira, a escola de samba, a Mangueira saiu!

- Neste calor? Não acredito.

Mário voltara para a sala, Vera seguiu-o vagarosamente;

- Olha, Vera, olha, são imagens do helicóptero...

Na telinha, realmente, rodopiavam lá em baixo umas figurinhas em verde e rosa.

- Não será um vídeo, Mário?

- Não, não, está no telejornal, e o rádio...

Sentaram-se em frente ao aparelho, logo Vera levantou-se, foi até a cozinha, voltou com duas bolachas e um copo d’água;

- É pros dois...

Ficaram ali na sala, quietos, os olhos grudados na televisão;

- Alô Ribeiro, aqui fala o Tomasino do Águia Um, parece que a batucada está começando no morro do Salgueiro vamos nos aproximar para um close... sim, está sim, a escola está descendo o morro...

- Alô Tomasino, está me ouvindo?

-... Tomasino direto do Andaraí, os Acadêmicos do Salgueiro estão saindo... mais baixo, chega mais perto! Tem gente, muita gente...

No rádio de Mário soa forte a voz do repórter;

- Aqui do morro do Salgueiro vos fala o repórter Lico, em nossa super-refrigerada “van”, o samba está rasgado por aqui... Ali! Vamos entrevistar o Veco, presidente da escola... Veco! Veco!

- ...Chama viva que clareia, clareia,
Deixa queimar que o sangue vai ferver na veia...

- Veco, com este calorão de sessenta graus, a sua escola vai sair no asfalto? Tá até derretendo...

- Vamo, vamo sim Lico, vai descê todo mundo, vamo si acabá sambando...

- ...Bota fogo na fogueira, Iáiá...

- Vão sair outras escolas, Veco?

- Vai sair, vai sair sim, Lico, vai sair tudo...

-... Do fogo que ilumina a vida,
Vermelho incendeia a avenida...

Mário e Vera olhavam estáticos para o locutor, que suava em bicas na telinha, enquanto dava novas notícias; já haviam saído a Imperatriz Leopoldinense, em Ramos, em Madureira o Império Serrano e a Portela, na Gamboa a Estácio de Sá... Começaram a ouvir ao longe, uma bateria cadenciada;

- Está ouvindo, Vera? É aqui? Será a São Clemente?

- Ou o Sovaco do Cristo?

Eram as duas; enquanto a televisão e o rádio espalhavam a notícia destes acontecimentos, a euforia e uma certeza iam tomando conta do povo, que via ali a morte possível e cheia de glória. Tomasino gritava do Águia Um;

- Os blocos também estão saindo, passamos por Santa Tereza, as ruas estavam lotadas, agora estamos sobre Laranjeiras, aqui tem bloco saindo também, deve ser o Concentra Mas Não Sai...

- Ou os Gigantes da Lua... Águia um, Águia Um, está me ouvindo?

- Estou Ribeiro, neste momento sobrevoamos o largo de Pilares, há uma escola e um bloco descendo em direção da praça, devem ser os Caprichosos de Pilares e os Zumbis...

No rádio, a voz histérica do locutor;

- O repórter Lico está na linha e tem mais informações para os nossos ouvintes;

- Olá, Valdir, deixamos Andaraí, estou neste momento em Madureira, a Portela e o Império Serrano estão nas ruas, parece que vão se encontrar no meio do bairro.

A exaltação tomara conta da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro; os botequins abriam suas portas e a pinga rolava de graça, papel picado voava dos edifícios, os foliões beijavam-se nas calçadas, tiravam suas fantasias nos locais menos quentes e faziam amor deitados sobre seus trapos coloridos. Novos foliões saiam de suas casas, juntavam-se às escolas ou procuravam seus blocos; Escravos da Mauá, Embaixadores da Folia, Este É Bom Mas Ninguém Sabe, Rabugentos Da Penha, o Bloco das Carmelitas, o do Bigode, o Bohemios do Irajá, o Caciques de Ramos...

-Alô Ribeiro, aqui é o Tomasino, já vemos alguns foliões caídos no asfalto, mas os outros continuam, procuram uma avenida; aqui na Rio Branco estão o Empolga Às Nove, o Cordão do Boitatá, o Bola Preta. Meu Deus deve estar fazendo uns sessenta, setenta graus lá em baixo e ninguém para...

- Valdir, Valdir, está me escutando?

- Nosso repórter Lico está na linha; fala Lico!

- Estamos chegando a Vila Isabel, o Segura Para Não Cair e o Sorri Para Mim estão por aqui... Amigo, amigo, aqui é da radio Nobel, fale aqui no microfone...

-Tô cherando que nem gambá!

- Tás cheirando à cachaça, mano; fecha a janela senão não agüento o calor.

- Águia UM, Águia UM, onde você está?

Sobrevoando Ipanema, Ribeiro, na General Osório já estão o Simpatia É Quase Amor e a Banda de Ipanema, todo o mundo de garrafa na mão.

- Aqui no estúdio temos novas notícias do nosso correspondente em Niterói; Fala Batista!

- Aqui na cidade de Niemeyer temos nas ruas os Unidos do Viradouro e as notícias que recebi de Nilópolis dizem que a Beija-Flor também saiu.

- Alô Valdir, aqui na Vila estou com um diretor da escola na linha; fala Latinha!

- Nós vamo morrê tudo bebum mermão!

E o povo começava a morrer mesmo, de exaustão, de choque térmico, de desidratação, de hipoglicemia. Na janela, Mario e Vera olhavam fascinados o novo mundo abaixo deles; em certo momento, olharam um para o outro, Mário foi buscar uma garrafa de uísque, um chapéu e amarrou, a guisa de capa, um lençol no pescoço; Vera vestiu um sutiã e uma saia rodada, pegou uma vassoura como estandarte e desceram ambos, beijando-se docemente nas escadas, para a rua. Na Voluntários da Pátria vinha passando um cordão com uma faixa de abre alas onde estava escrito – Os Batutas De Chandrashekar. O bloco era meio avacalhado, mas Mário e Vera não hesitaram: entraram evoluindo no asfalto, ele com passes de mestre sala e ela com a graça de uma porta-bandeira, guiando seu povo para o último desfile.


São Paulo, sexta-feira da Paixão de 2007.

N. - A assessoria científica foi de Pedro Góes, e o samba-enredo do Salgueiro é de autoria de Moises Santiago, Waltinho Honorato, Fernando Magaça e Luiz Antonio.

quinta-feira, abril 05, 2007

Dr Lúcio

Há algum tempo, li no Vitruvius um artigo da arquiteta Cecília Rodrigues sobre o Estádio do Pacaembú, no qual adorei a frase que ela citou do Dr. Lucio, a resposta do mestre a um parecer solicitado sobre um terminal de ônibus a ser instalado no Passeio Público da cidade do Rio de Janeiro(não pode, naturalmente.) e aproveito para narrar um fato que presenciei há uns trinta e sete anos atrás, que demonstra a seriedade e a solidez de caráter com que ele tratava os assuntos ligados ao patrimônio histórico da nação. Nesta época eu era estagiário de um escritório de arquitetura cujo titular (permitam-me não citar seu nome) trabalhara muitos anos, como estágiário e depois como arquiteto, com o Dr. Lucio. Depois de algum tempo, o mestre conseguiu (seu prestígio internacional era imenso) que seu pupilo fosse trabalhar na França, no escritório do Bernhard Zerfhuss, onde ele ficou por alguns anos acompanhando a obra da sede da UNESCO, em Paris. Voltando ao Brasil, abriu seu próprio escritório mas continuou muito amigo do Dr. Lucio (era esta a única maneira dele se referir ao mestre, em público ou em particular). Pois bem, o escritório foi então convidado para participar de um concurso privado para a sede de um Banco, em um terreno que fazia esquina com a praça Pio X e a Rua da Quitanda, dando também para a rua da Alfândega; o prédio faria frente, portanto, para a igreja de Nossa Senhora da Candelária e o gabarito para a praça era, senão me engano, de dez pavimentos mais térreo, mezzanino e cobertura. Meu chefe, então, "bolou" um partido em que o edifício seria segmentado em três volumes contínuos e justapostos, valendo-se dos diferentes gabaritos da Pio X, da Rua da Quitanda e da rua da Alfândega (os dos dois últimos eram maiores do que o da praça). Satisfeito com sua solução, que achava que era a "sacada" para ganhar o concurso ( e era realmente uma solução engenhosa), levou-a, por precaução, para a apreciação do Dr. Lucio, pois a Candelária era e é, naturalmente, um edifício tombado. Lembro-me que quando ele voltou da entrevista, acorremos todos para saber o que dissera o mestre. "Não pode ser, H., o gabarito tem de ser o da praça Pio X" fora o único comentario do Lucio Costa ao projeto e, podem acreditar, nem passou pela cabeça do meu chefe argumentar ou discutir o partido, apenas disse-nos, "o Dr, Lucio não deixou, vamos fazer com um único gabarito" e nada mais lhe foi perguntado (por nós, estagiários). Assim era o Dr. Lucio.