O Limite de Chandrashekar
Após um período de estupefação geral, a humanidade caíra aparentemente em uma espécie de apatia fatalista, de uma aceitação melancólica e resignada do seu destino, embora continuasse a utilizar todas as fontes de energia disponíveis para refrigerar-se e a produzir toda espécie de aparelhos e geringonças para que isto se tornasse possível, trancando-se na atmosfera artificial de seus lares, fábricas e escritórios; no entanto os incêndios grassavam nos campos cada vez com maior freqüência, o gado morria nos pastos queimados, os corpos dágua evaporavam e a fome e a sede rondavam por toda a humanidade.
Na janela do seu apartamento em Botafogo, Mário olhava o panorama desolado aos seus pés; lojas fechadas devido aos constantes saques de alimentos e bebidas, ruas vazias, pois não havia sentido em desperdiçar-se combustível em automóveis e era impossível suportar-se o calor já de uns 60º C, o rádio e a televisão ligados naquela eterna espera por notícias (ou por um milagre). Pensava então na melhor forma de suicidar-se (junto com a namorada?), para não morrer de sede, fome, sufocado ou ainda queimado em algum inevitável incêndio. Tiro? Não possuía um revolver, nunca tivera armas em casa; o gás havia sumido faziam semanas; comprimidos, não os tinha nem havia jeito de consegui-los com o comércio saqueado e trancado. O jeito era saltar da janela, o que lhe dava arrepios, o salto no vazio, para o quê, para onde? Sacudiu a cabeça, tomou um gole da água avidamente racionada e foi dar uma espiada em Vera, que dormia no quarto, o corpo nu coberto de suor.
Mário sentou-se na beirada da cama; ela ressonava, dormiam agora doze, quinze horas por dia, naquele quartinho quente. Será que Vera saltaria com ele? Nunca indagara como ela gostaria de morrer, o assunto parecia ser tabu entre os dois. Puxa-vida. Gostaria ver os pais antes do fim, mas estes moravam em Jacarepaguá, não havia mais como chegarem até lá. Mas eis que toca na televisão (único contato com o mundo, pois os telefones já há meses haviam emudecido) a vinheta do telejornal; Mário arrastou os pés até a sala e caiu derreado, numa poltrona.
-... notícia recebida de nosso helicóptero Águia Dois, há batuque no morro da Mangueira, parece que a escola está descendo para o asfalto...
Mário sintonizou o rádio também, o noticiário estava no ar, a Mangueira descia as ladeiras, o povo fantasiado como podia, a bateria retumbando firme, comissão de frente, mestre-sala e porta-bandeira, a ala das velhas baianas rodando as saias, o puxador cantando um samba antigo. Correu para o quarto e sacudiu a namorada;
- Acorda, Vera, a Mangueira saiu...
- Mas o que...
- A Mangueira, Vera, a Mangueira desceu do morro!
Vera, estremunhada, enxugou o rosto com o lençol e sentou-se.
- O que você disse?
- Mangueira, a escola de samba, a Mangueira saiu!
- Neste calor? Não acredito.
Mário voltara para a sala, Vera seguiu-o vagarosamente;
- Olha, Vera, olha, são imagens do helicóptero...
Na telinha, realmente, rodopiavam lá em baixo umas figurinhas em verde e rosa.
- Não será um vídeo, Mário?
- Não, não, está no telejornal, e o rádio...
Sentaram-se em frente ao aparelho, logo Vera levantou-se, foi até a cozinha, voltou com duas bolachas e um copo d’água;
- É pros dois...
Ficaram ali na sala, quietos, os olhos grudados na televisão;
- Alô Ribeiro, aqui fala o Tomasino do Águia Um, parece que a batucada está começando no morro do Salgueiro vamos nos aproximar para um close... sim, está sim, a escola está descendo o morro...
- Alô Tomasino, está me ouvindo?
-... Tomasino direto do Andaraí, os Acadêmicos do Salgueiro estão saindo... mais baixo, chega mais perto! Tem gente, muita gente...
No rádio de Mário soa forte a voz do repórter;
- Aqui do morro do Salgueiro vos fala o repórter Lico, em nossa super-refrigerada “van”, o samba está rasgado por aqui... Ali! Vamos entrevistar o Veco, presidente da escola... Veco! Veco!
- ...Chama viva que clareia, clareia,
Deixa queimar que o sangue vai ferver na veia...
- Veco, com este calorão de sessenta graus, a sua escola vai sair no asfalto? Tá até derretendo...
- Vamo, vamo sim Lico, vai descê todo mundo, vamo si acabá sambando...
- ...Bota fogo na fogueira, Iáiá...
- Vão sair outras escolas, Veco?
- Vai sair, vai sair sim, Lico, vai sair tudo...
-... Do fogo que ilumina a vida,
Vermelho incendeia a avenida...
Mário e Vera olhavam estáticos para o locutor, que suava em bicas na telinha, enquanto dava novas notícias; já haviam saído a Imperatriz Leopoldinense, em Ramos, em Madureira o Império Serrano e a Portela, na Gamboa a Estácio de Sá... Começaram a ouvir ao longe, uma bateria cadenciada;
- Está ouvindo, Vera? É aqui? Será a São Clemente?
- Ou o Sovaco do Cristo?
Eram as duas; enquanto a televisão e o rádio espalhavam a notícia destes acontecimentos, a euforia e uma certeza iam tomando conta do povo, que via ali a morte possível e cheia de glória. Tomasino gritava do Águia Um;
- Os blocos também estão saindo, passamos por Santa Tereza, as ruas estavam lotadas, agora estamos sobre Laranjeiras, aqui tem bloco saindo também, deve ser o Concentra Mas Não Sai...
- Ou os Gigantes da Lua... Águia um, Águia Um, está me ouvindo?
- Estou Ribeiro, neste momento sobrevoamos o largo de Pilares, há uma escola e um bloco descendo em direção da praça, devem ser os Caprichosos de Pilares e os Zumbis...
No rádio, a voz histérica do locutor;
- O repórter Lico está na linha e tem mais informações para os nossos ouvintes;
- Olá, Valdir, deixamos Andaraí, estou neste momento em Madureira, a Portela e o Império Serrano estão nas ruas, parece que vão se encontrar no meio do bairro.
A exaltação tomara conta da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro; os botequins abriam suas portas e a pinga rolava de graça, papel picado voava dos edifícios, os foliões beijavam-se nas calçadas, tiravam suas fantasias nos locais menos quentes e faziam amor deitados sobre seus trapos coloridos. Novos foliões saiam de suas casas, juntavam-se às escolas ou procuravam seus blocos; Escravos da Mauá, Embaixadores da Folia, Este É Bom Mas Ninguém Sabe, Rabugentos Da Penha, o Bloco das Carmelitas, o do Bigode, o Bohemios do Irajá, o Caciques de Ramos...
-Alô Ribeiro, aqui é o Tomasino, já vemos alguns foliões caídos no asfalto, mas os outros continuam, procuram uma avenida; aqui na Rio Branco estão o Empolga Às Nove, o Cordão do Boitatá, o Bola Preta. Meu Deus deve estar fazendo uns sessenta, setenta graus lá em baixo e ninguém para...
- Valdir, Valdir, está me escutando?
- Nosso repórter Lico está na linha; fala Lico!
- Estamos chegando a Vila Isabel, o Segura Para Não Cair e o Sorri Para Mim estão por aqui... Amigo, amigo, aqui é da radio Nobel, fale aqui no microfone...
-Tô cherando que nem gambá!
- Tás cheirando à cachaça, mano; fecha a janela senão não agüento o calor.
- Águia UM, Águia UM, onde você está?
Sobrevoando Ipanema, Ribeiro, na General Osório já estão o Simpatia É Quase Amor e a Banda de Ipanema, todo o mundo de garrafa na mão.
- Aqui no estúdio temos novas notícias do nosso correspondente em Niterói; Fala Batista!
- Aqui na cidade de Niemeyer temos nas ruas os Unidos do Viradouro e as notícias que recebi de Nilópolis dizem que a Beija-Flor também saiu.
- Alô Valdir, aqui na Vila estou com um diretor da escola na linha; fala Latinha!
- Nós vamo morrê tudo bebum mermão!
E o povo começava a morrer mesmo, de exaustão, de choque térmico, de desidratação, de hipoglicemia. Na janela, Mario e Vera olhavam fascinados o novo mundo abaixo deles; em certo momento, olharam um para o outro, Mário foi buscar uma garrafa de uísque, um chapéu e amarrou, a guisa de capa, um lençol no pescoço; Vera vestiu um sutiã e uma saia rodada, pegou uma vassoura como estandarte e desceram ambos, beijando-se docemente nas escadas, para a rua. Na Voluntários da Pátria vinha passando um cordão com uma faixa de abre alas onde estava escrito – Os Batutas De Chandrashekar. O bloco era meio avacalhado, mas Mário e Vera não hesitaram: entraram evoluindo no asfalto, ele com passes de mestre sala e ela com a graça de uma porta-bandeira, guiando seu povo para o último desfile.
São Paulo, sexta-feira da Paixão de 2007.
N. - A assessoria científica foi de Pedro Góes, e o samba-enredo do Salgueiro é de autoria de Moises Santiago, Waltinho Honorato, Fernando Magaça e Luiz Antonio.
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