PALLADIO

quarta-feira, dezembro 13, 2006

A Ressurreição de Lázaro

Quando Lázaro ressuscitou, toda a sua vida passada surgiu em seu espírito como um súbito clarão. Atordoado, ergueu-se do sepulcro familiar e olhou demoradamente as figuras ao seu redor, reconhecendo-as uma a uma. Em pé, diante do túmulo, enfileiravam-se sua esposa, já avançada em anos, seus dois filhos adultos, sua irmã, ressuscitada uns meses antes, um ou outro amigo mais chegado, o padre, com seus paramentos fúnebres, e os exumadores de nascituros. Saudou a todos com circunspeção e após assistir, silencioso, a uma breve cerimônia em sua intenção, abraçou e beijou os seus, ouvindo, em retribuição, as palavras compassivas e afetuosas usualmente dirigidas aos que retornam da morte.

Terminados os ritos de praxe, dirigiram-se todos, em grupo, para a saída do cemitério, onde os aguardavam solenemente duas limusines negras e dois ou três basbaques que por ali ficaram a espionar os rostos alegres que surgiam no portal barroco, juntamente com as coroas de flores. De lá, Lázaro foi levado imediatamente ao hospital vizinho para aguardar, por algumas semanas, a regressão de sua doença.

No hospital, seus dias transcorreram em relativa calma, embora, no início, sofresse com as dores atrozes, características de sua moléstia, dores estas medicadas com poderosos analgésicos que o deixavam sonolento e fatigado. Com o passar do tempo e sua progressiva melhora, passou a receber visitas diariamente; de sua família, dos seus amigos e, principalmente, do seu neto querido que, por estar a cada dia mais novo, já pouco saía de casa. Dulce, sua esposa, gostava de comentar com ele os fatos ocorridos antes da sua ressurreição; o Pedrinho, bem, já o vira com seus próprios olhos; os sobrinhos também haviam saído da escola e agora ficavam praticamente o dia inteiro em casa, cada vez falando menos e balbuciando mais – umas gracinhas! Ela mesmo, que desde que saíra do túmulo, morava na casa da nora, já se sentia mais disposta no dia a dia, começara a fazer pequenos passeios solitários pela vizinhança, pensava em sair às compras ou visitar amigas recém-exumadas.

Também Lázaro sentia-se melhor. Saíra da UTI, paulatinamente foram suspensas a monitorização do seu corpo e a alimentação parenteral; assistiu aliviado, a retirada das sondas e agulhas que tanto o incomodavam e mais – as dores abrandavam, o ânimo retornava, via-se, de repente, fazendo planos para o passado. Procuraria seu ex-patrão, o Doutor Trigueiro para por fim ao término de sua longa carreira na Engefiss S.A., onde haveria de começar, na década de quarenta, como um estagiário esperto e aplicado. O apartamento onde viveria com a Dulce fora readquirido por seus filhos, a mobília foi reavida e recolocada nos devidos lugares, só faltava mesmo a presença dos velhinhos, em breve para lá iriam os dois.

Quando Lázaro deixou o hospital, maio começava com seu céu de um azul sem mácula e seus dias frescos e ensolarados, seria o outono a estação que ele mais apreciaria dali para trás.

-“Ah! A mais bela época do ano...” pensava Lázaro enquanto seguia com Dulce para seu novo ex-apartamento. Naquele dia, ambos encaravam com confiança seu passado próximo e foi com alegria que iniciaram suas pós-mortes no lar que habitariam por trinta e dois longos anos, rejuvenescendo juntos e amando-se com crescente paixão, conforme o tempo regredia. E assim, Lázaro acompanhou o renascimento dos seus pais e sogros (que saudades do Pedrinho!), a adolescência e depois a infância dos filhos até o seu desaparecimento, o dia inesperadamente belo de seu casamento com a Dulce, linda de viver em seu branco vestido de noiva.

Depois deste dia inesquecível, separaram-se, Dulce voltou para a casa dos pais e Lázaro foi para o quarto-e-sala da Avenida Gerbóia. Mas, mesmo assim, ainda se viam bastante, tinham longas conversas, namoravam e faziam amor no fusquinha do Lázaro – o síndico do seu prédio era rigoroso e moralista – até que, já na adolescência, foram cada um para o seu lado e não se encontraram mais; felizmente, para os dois, o desaprendizado constante não os deixava preocuparem-se com o passado ou sentirem saudades do futuro.

O tempo continuava a voltar. Dulce saiu do ginásio e entrou para um colégio de freiras e, não tendo mais seus filhos para cuidar, começou a brincar com bonecas. Lázaro começou a jogar disputadas peladas com os outros meninos da sua rua e depois, bola de gude ou peteca. Tobby, seu fox-terrier, reviveu e foi seu constante companheiro de aventuras e travessuras até o começo. O dono, a cada ano que desfazia, ficava menor e mais deseducado; colecionava gibis, – os livrinhos pornográficos haviam ficado para frente – modelos de aviões e, mais cedo, de automóveis, álbuns de figurinhas. Em seguida saiu da escola e, brincando com os amiguinhos, começou sua jornada para o fundo da infância, que o conduziria, em seu final, ao nada de onde saíra, no início.



Euclides Oliveira