PALLADIO

sexta-feira, outubro 13, 2006

O ESPELHO DE MONDRIAN

Ao olhar-se pelo espelho, em uma certa manhã chuvosa, o homem viu-se vestido com uma camisa vermelha. Sentiu um repentino sobressalto, voltou o olhar para si - estava com uma camisa bege. Olhou de novo para o espelho; lá estava ele de camisa vermelha. Alarmado, correu para o quarto, acordou a mulher:
-De que cor é esta camisa que estou usando?
-Que...
-Qual a cor da minha camisa, meu bem?
-É bege, está ficando maluco, ou o que?
Voltou para o banheiro, espiou o espelho de soslaio e pronto – camisa vermelha. Estaria louco mesmo? Suou frio, achou que ia passar mal.
-Acalme-se, -pensou, - por Deus, tenho de me acalmar. Calma, calma!
Voltou a mirar-se e não havia dúvida, era ele mesmo com uma camisa de um vermelho forte, vistoso. Procurou reparar nos outros objetos refletidos no espelho; a louça, os azulejos, o box do chuveiro e todos eles lá estavam, exibindo suas cores originais. Voltou para o quarto e trocou de camisa, vestiu uma azul-celeste, voltou ao banheiro e dirigiu-se mais uma vez ao espelho; viu-se, como temia, num modelo diferente de camisa, mas a cor era a mesma, vermelha. Correu, então, para a sala, onde havia um pequeno espelho junto à porta de entrada e, para choque seu, apareceu usando uma camisa azul. Voltou ao banheiro – camisa vermelha.
Não cabiam dúvidas, não era sua vista e nem os espelhos em geral, era este, o do banheiro, que estava o que? Encantado? Não podia acreditar nisto; estaria ele, o Costa, surtando? Afinal o que era uma cor? Procurou racionalizar, o caso era, evidentemente, um fenômeno psíquico e não físico. Seria a camisa vermelha um sinal? Um aviso, uma mensagem? Enviada por que, por quem? Voltou a pensar nas cores (percebeu o quão pouco pensava nelas), seriam elas símbolos, o que simbolizaria o vermelho? Sangue, revolução... paixão? Mas qual, paixão antiga? Nova? Não, sangue... um acidente? Atropelaria alguém durante o dia, bateria o carro, morreria? Outra coisa, outra coisa... touradas! O vermelho das capas dos toureiros? O touro. A espada, a ferida. O poente. A alvorada. Uma rosa, um tomate.
Enfim desistiu do enigma, resolveu sair para o trabalho e, ao passar pela mulher, na copa, beijou-a no rosto e perguntou pela cor da camisa que estava usando.
-Azul, ceguinho. Quer me gozar? -A mulher estava perplexa.
-Brincadeirinha, amor, tchau.
Costa chegou são e salvo ao escritório, mas passou o dia inteiro a mirar-se em espelhos, vitrines, até em poças d’água (chovia) e a cor da camisa era sempre a mesma: azul-celeste. Decididamente apenas um, apenas o espelho do banheiro estava errado. Ou encantado. Um fato sobrenatural. Mas faltava um último teste; ao chegar em casa levou a mulher para a frente do famigerado objeto e de novo perguntou pela cor de sua camisa.
-Mas o que é isso, o que está acontecendo, Costa?
-Me responde, meu bem, é importante para mim, diga, estou vendo meio embaçado, sei lá...
-É azul, azulíssima, cerúlea, celestial, está satisfeito?
-Não se zangue, querida, semana que vem vou ao oculista... (mas por que só a camisa? Por que não a...)
-Por mim você iria amanhã mesmo...
Nos dias que se seguiram, o Costa experimentou diversas combinações de calças e camisas, mas o resultado, no espelho do banheiro, era sempre o mesmo; apenas a camisa resplandecia em vermelho, as outras peças mantinham sua cor original. Estava quase por acostumar-se ao fenômeno ( iria falar dele com quem?), quando um dia a camisa apareceu-lhe cinza. De novo, num susto, olhou para baixo: camisa branca. Trocou de camisa, colocou uma vermelha. Retornou ao espelho: camisa cinza. Voltou a pensar se não haveria ali um sinal, uma advertência; no entanto, os dias anteriores haviam sido absolutamente normais, apesar da camisa pseudo-vermelha; nada ameaçava seu futuro a não ser o acaso.
Desta vez, porém, o acaso esteve presente. No meio da tarde o telefone tocou em sua mesa, ele atendeu e lá estava a voz de sua mulher, meiga, tristonha:
-Querido, seu pai acaba de me telefonar, sua avó faleceu; ele estava emocionado, pediu-me para te dar a notícia, venha para casa...
Costa saiu do escritório triste, mas intrigado, pensativo; então havia realmente uma mensagem nas cores, no espelho. Significaria o cinza a morte? Mas a morte de outrem, não a dele? Que diabo, com quem assim comunicava-se, quem queria adverti-lo, prever-lhe o futuro? Qual futuro? O do dia por acontecer?
Suas camisas continuaram na cor cinza por mais alguns dias e depois voltaram à cor (habitual?) vermelha. Que curioso, pensou, significaria o vermelho não a tragédia ou a paixão, mas apenas um dia normal, confortável? Era isto! O vermelho significava felicidade! Pois, apesar do espelho “assombrado”, andava de bem com a vida em geral. Seu casamento seguia sem maiores entraves, a mulher amadurecia com graça, o filho entrara e progredia na escolinha e, afora a avó falecida, a saúde da família era boa, graças a Deus. Sentiu com convicção que era assim: o espelho comunicava-lhe o porvir diário, ou... isto! previa seu estado emocional durante o dia em conseqüência do...melhor mesmo era não pensar demais no assunto...; e assim foi-se acostumando às mensagens diárias (de quem, minha Nossa Senhora) que recebia pelo espelho; belos dias com a camisa vermelha, outros tristonhos, com a cinza, mas todo homem tem seus dias cinzentos, melancólicos, assim era e é a vida.
Certa manhã acordou com gripe; cabeça latejando, tosse, arrepios de frio. Não teve dúvidas, vestiu uma camisa qualquer, e correu ao banheiro para verificar sua mensagem do dia. A camisa estava amarela (era verde). Amarelo, o que significava? Segundo a bíblia, pensou, quando o Cristo morrera na cruz, o céu ficara amarelo; mas o amarelo não podia significar tristeza porque o cinza...opa! Estava compreendendo o jogo de cores do espelho; o vermelho, o amarelo eram, como se chamavam mesmo... cores primárias! Quais eram mesmo as outras? Foi para o computador e entrou na internet; colors, cores, teoria das cores... Leonardo da Vinci, pirâmide de Jaubert, ordem de Munsell... cores primárias: vermelho, amarelo, azul... Impressionou-o a definição do branco; “...harmonia do silêncio, o apelo do nada que existe antes do nascimento...” Mondrian! Lembrou-se do pintor que vira e gostara no Moma, quando fora a Nova Iorque, recordou que o guia dissera que este sempre empregava, em seus quadros geométricos, as cores primárias. Piet Mondrian, era seu nome. Passou, então, a chamar seu espelho de “espelho de Mondrian”.
Bem, sua camisa ficou amarela por mais alguns dias e depois voltou ao vermelho habitual. Que alívio, pensou, pena não poder compartilhar esta fantástica experiência com alguém, era um fenômeno dele, o Costa, indivisível com o restante da humanidade.
Numa dessas belas manhãs de outono, enquanto se barbeava, notou que sua camisa estava preta. Imediatamente um arrepio percorreu-lhe o corpo, angustiava-se, preto significava luto, a morte, o preto era a morte, pôrra! A sua morte, o “espelho de Mondrian” só se referia a si mesmo, ó meu! O que fazer? Caraco!
Telefonou para o seu médico, tentou marcar a consulta para o mesmo dia.
_Não é possível, Seu Costa, o doutor Renato está com a agenda lotada, horário para consulta só na quinta que vem...
-Não podia ser, tinha de ser atendido naquele mesmo dia, insistiu, sentia-se mal, que lhe arranjasse um encaixe, uns minutinhos... sua voz soava súplice...
Graciosamente a atendente deu um jeitinho e na hora do almoço lá estava ele, no consultório, diante do médico.
-O que é que há, Costa, o que está sentindo?
Atrapalhou-se um pouco, percebeu que não planejara seu discurso, o que falar, não poderia ser sobre espelhos e cores…
-Sinto-me mal, Dr. Renato, um mal estar esquisito, indefinido, será que minha pressão está alta? O coração, talvez?
- A ver, Costa, tire sua camisa (preta?) e sente-se na maca.
O médico examinou-o cuidadosamente, auscultou-lhe pulmões e coração, apalpou o fígado e o baço, tomou-lhe a pressão.
-Quanto por quanto, doutor?
-Normal, Costa, fique tranqüilo.
Dirigiu-se ao interfone;
-Dalva, faça um eletro no doutor Costa.
Vinte minutos após, lá estava ele de volta a sala do médico.
-Não vejo, em princípio, nada de anormal em você, Costa. Por acaso anda tenso? Como vai sua família, seu trabalho?
-Tudo bem, doutor Renato, mas este corre - corre...
-Vou receitar-lhe uma pequena dose de calmante, Costa, acho que você está apenas estressado. Caso não melhore, telefone-me para investigarmos mais a fundo este seu mal estar.
Saiu do consultório, aliviado, mas intrigado. Seria então a morte de um “outro”, de um ente querido, um amigo? Não podia ser, a tristeza era cinza...pôrra! Tenho de contar a alguém o caso do espelho, senão fico maluco, catzo!
Naquela tarde Costa foi chamado pelo seu chefe, que felicitou-o, dizendo que o tinha promovido a Supervisor de Grupo, que teria uma salinha própria, um aumento razoável no salário, etc., etc.. Ficou agradavelmente surpreso.
-Não sei o que dizer, doutor Martelli, estou admirado que...
-Não há do que se admirar, Costa, meus cumprimentos, você mereceu, mas agora desculpe-me, estou um pouco ocupado...
Despediu-o com um tapinha amável na face, levou-o até a porta, recomendou-lhe:
-Faça jus a esta promoção, Costa. Avanti, bambino! Via! Via!
À noite foi jantar com a esposa para comemorar, pediram uma garrafa de Barolo em homenagem ao chefe, voltaram alegres para casa, fizeram sexo amorosamente, mas ficara-lhe a pergunta, a dúvida – o significado do preto. Dinheiro? Poder? Progresso, ou o que?
O tempo foi passando e os seus dias de camisa vermelha alternavam-se com os dias de camisa cinza, sendo visível a vantagem dos primeiros... (e o azul? faltava o belo azul de Mondrian...); um ligeiro resfriado, uma incômoda constipação resultaram em alguns dias de camisa amarela. O fenômeno passara a fazer parte de sua vida, era como que um oráculo particular de quem só ele conhecia as regras e delas se servia todas as manhãs. Até que, numa dessas, apareceu no espelho de branco. Branco, o que significaria? pensou. O código das mensagens era simples; vermelho para a felicidade, cinza para a tristeza, amarelo para a dor, preto... lembrou-se de algo que lera sobre o branco, quando consultara a internet, sobre as cores; o branco era o silêncio, o chamado do nada? Era isto? Voltou ao computador; colors, em português, pirâmide de Jaubert... deparou-se, de súbito, com o texto aterrador: “A cor negra está associada à morte apenas na cultura ocidental, o mesmo não ocorre em várias culturas orientais, onde a cor do luto é o branco...” Estremeceu, a cor da camisa referia-se sempre a si próprio, era um aviso, seria... A suspeita veio avassaladora. Costa correu para o “espelho de Mondrian”, arrancou-o da parede, virou-o ao avesso e leu, horrorizado, as palavras lá escritas: “Made in China”. Neste instante sentiu, inexoravelmente, que iria morrer e morreu. Mais tarde, em seu velório, enquanto sua esposa chorava e os presentes lamentavam e se condoíam do ocorrido, Costa repousava em seu esquife, ar sereno, coberto de lírios e vestido com seu melhor terno, o azul.

São Paulo, iniciado em uma manhã de inverno radiosamente bela, em 27 de julho de 2002, e finalizado em outra manhã, esta de 24 de janeiro de 2006.
Euclides Oliveira.