PALLADIO

segunda-feira, março 05, 2007

A CARTA





Dia cinzento e abafado
Depois do tempo perfeito de ontem;
Os aviões decolam
E passam sobre mim.


Mandei hoje de manhã
A seguinte carta:
Prezado Senhor...


O escorpião queria atravessar um rio
E como não soubesse nadar
Pediu ao sapo que o levasse em suas costas.


-Achas que sou um tolo? – disse o sapo
- Estando sobre meu lombo
Você poderá picar-me
Com teu venenoso ferrão
E eu serei um batráquio morto.


-Não seja estúpido, sapo,
-Replicou o escorpião
-Se eu assim o fizesse,
Tu afundarias na correnteza
E eu, contigo, me afogaria.


-Verdade - concordou o sapo
-Suba, mano, que num instante
Deixo-te na outra margem do rio.


Subiu o escorpião nas costas do sapo
E quando já ia este, sossegado,
Pelo meio da travessia,
Picou-o com o ferrão venenoso.


O sapo bradou:
-Louco! Insensato!
Por que fizeste isso?
Agora morreremos ambos, tu afogado,
E eu do teu veneno!
Que sentido há nisto?


E o escorpião disse para o sapo:


- Tu te esqueces, tolo,
Que antes de tudo sou um escorpião?
E que matar é a minha natureza, agindo assim
Estou apenas cumprindo o meu destino.
Realizando a minha missão?


E, deste modo, morreram os dois.


Depois, telefonei e a secretária disse
Que o senhor saíra e não voltaria,
Fora ver o quarto do filho. Ou da puta.
Com este e mais vários desaparecidos
Em breve não haverá mais um burgeois
Do outro lado da linha.


Outra carta:

Prezado Senhor...
Tenho de seguir
O meu destino
De escorpião
Mas também sou o sapo,
Tenho de atravessar a vida,
Chegar à outra margem:
Então, me diga,
Como fazer?
Como cruzar o rio
Sem me ferir?
É-me impossível
Evitar tal fato,
É preciso viver
O real,
É preciso louvar
O veneno,
É preciso amar
A travessia
Mesmo que esta seja
Interrompida.