A CARTA
Dia cinzento e abafado
Depois do tempo perfeito de ontem;
Os aviões decolam
E passam sobre mim.
Mandei hoje de manhã
A seguinte carta:
Prezado Senhor...
O escorpião queria atravessar um rio
E como não soubesse nadar
Pediu ao sapo que o levasse em suas costas.
-Achas que sou um tolo? – disse o sapo
- Estando sobre meu lombo
Você poderá picar-me
Com teu venenoso ferrão
E eu serei um batráquio morto.
-Não seja estúpido, sapo,
-Replicou o escorpião
-Se eu assim o fizesse,
Tu afundarias na correnteza
E eu, contigo, me afogaria.
-Verdade - concordou o sapo
-Suba, mano, que num instante
Deixo-te na outra margem do rio.
Subiu o escorpião nas costas do sapo
E quando já ia este, sossegado,
Pelo meio da travessia,
Picou-o com o ferrão venenoso.
O sapo bradou:
-Louco! Insensato!
Por que fizeste isso?
Agora morreremos ambos, tu afogado,
E eu do teu veneno!
Que sentido há nisto?
- Tu te esqueces, tolo,
Que antes de tudo sou um escorpião?
E que matar é a minha natureza, agindo assim
Estou apenas cumprindo o meu destino.
Realizando a minha missão?
E, deste modo, morreram os dois.
Que o senhor saíra e não voltaria,
Fora ver o quarto do filho. Ou da puta.
Com este e mais vários desaparecidos
Em breve não haverá mais um burgeois
Do outro lado da linha.
Outra carta:
Prezado Senhor...
Tenho de seguir
O meu destino
De escorpião
Mas também sou o sapo,
Tenho de atravessar a vida,
Chegar à outra margem:
Então, me diga,
Como fazer?
Como cruzar o rio
Sem me ferir?
É-me impossível
Evitar tal fato,
É preciso viver
O real,
É preciso louvar
O veneno,
É preciso amar
A travessia
Mesmo que esta seja
Interrompida.
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