PALLADIO

sábado, abril 14, 2007

As Torres de Ohrn.

As Torres de Ohrn.

Na antiga cidade de Ohrn, ou Ohren, duas torres negras erguiam-se da cimalha de suas muralhas, guardando à noite o sono de seus habitantes; não eram elas guarnecidas, porém seu aspecto sombrio bastava para afastar os seres crepusculares que viviam a rondar, como lobos famintos de uma alcatéia, a cidadela. Assim, em seus quartos bem aquecidos, os burgueses de Ohrn podiam dormir tranqüilos, protegidos pelos noturnos gigantes que os guardavam daquele povo apenas pressentido, de sua fome adivinhada, de sua tristeza presumida.

Eram as torres de sólida construção, mas velhas, tão velhas que ninguém sabia de sua origem no tempo e nem haviam notícias do povo que as tinham erguido com blocos de duro gnaiss, rudemente talhados em pedreiras desconhecidas. Tão afeitos eram os burgueses aos seus negócios que de suas maciças presenças não se davam conta, enquanto atarefavam-se no mercado de Ohrn, nem mesmo quando o sol poente lançava suas longas sombras sobre a praça e trancados eram os portões da cidadela; mas tal desinteresse, em breve, haveria de mudar.

Em certa noite de abril o burgomestre insone, chegando-se ao balcão, viu que uma das torres desaparecera, ficando assim perdida a bela simetria, antes por todos ignorada. Ao amanhecer reuniram-se os burgueses na praça, para assustados, comentarem o acontecido. Que magia forte seria aquela? Ou mais seria obra de engenharia? Quem ou o que a levaria? E aonde (se possível fosse) teriam a torre escondido? Sem convicção ou fé resolveram então, esperarem pela noite e a nova madrugada para verem se tudo ao (para)-normal não voltaria.

Mas o mistério ficou, a torre não reapareceu. Desta manhã em diante, em todas as madrugadas, os assustados burgueses assomavam às suas janelas e varandas, a procurar pela torre que restara, conferindo sua necessária permanência (e orando pelo retorno da desaparecida). Desta maneira as noites tornaram-se mais longas e os dias mais curtos, enquanto que a angústia e o medo tomavam conta da pacata cidade; a ausência de uma das guardiãs de Ohren, causa de toda aquela assimetria, não saia da memória dos seus cidadãos.

Sete dias e sete noites assim passaram-se e então, o que era por todos temido, aconteceu; a sétima madrugada chegou sem a derradeira torre. Após a discussão de praxe na praça sobre o ocorrido, trancaram-se os burgueses em seus lares, aflitos, vulneráveis, amedrontados; velas foram acesas, orações nos cantos murmuradas, víveres estocados e armas azeitadas para protegerem-se dos seres crepusculares que fatalmente viriam despojá-los de seus bens e haveres.

Mas ocorria que a turba atrasava-se, os bárbaros demoravam; iam-se as noites, vinham os dias e os seres temidos não apareciam. Assim sendo, pouco a pouco, voltou a cidade ao normal, à sua ordem habitual; o mercado funcionava, a Bolsa fazia o pregão, havia nos cafés o aperitivo do meio dia, as noites eram vencidas sem sustos por sonos com sonhos sem culpa.

E então, aconteceu. Abertas as janelas numa gelada manhã invernal, viram os burgueses os seres crepusculares vagando silenciosamente pelas ruas, caminhando em hordas intermináveis em meio a branco e espesso nevoeiro.

De início, nada para si tomaram; passavam olhando o luxo das vitrines, as aldravas de ouro dos portões, os frontões de ornamentos rebuscados, como se aquilo não bem compreendessem ou que não lhes dissesse respeito; apenas para espanto dos burgueses, reviraram as latas de lixo e tiraram dali o seu repasto, que devoraram na beira das calçadas; chegada a noite (não se acenderam os lampiões) reuniram-se na praça os bárbaros e ali dormiram seu sono ameaçador.

Alma nenhuma da cidade de Ohrn atreveu-se naquele dia o seu abrigo deixar, portas e venezianas permaneceram trancadas, espiavam o povo pelas frestas das janelas, a multidão infinda que não terminava de passar. Então eram assim os temidos seres crepusculares? Esquálidos, de cinzas e de chagas cobertos, a moverem-se como marionetes em meio ao sepulcral silêncio que reinava nas ruas de Ohren? Dormiram cheios de pavor os burgueses nesta noite e quando tinham pesadelos era para o medo que acordavam, trancafiados em seus quartos abafados.

Pela manhã ouviram um breve burburinho vindo da praça e depois o silêncio. Horas se passaram sem novas sonoridades; teriam as criaturas abandonado a cidade sem nada levar? Um a um, alma a alma, corpo a corpo, foram deixando suas mansões os burgueses, dirigindo-se como de hábito, para a praça. Encontraram-na deserta, sem marca alguma dos maltrapilhos; mas ao erguerem os olhos para a torre da igreja acharam-na diferente; o que seria, o que estaria... Ah! Faltava-lhe o sino! Então era assim, as criaturas roubaram o sino de Ohrn, sua Matriz ficara emudecida.

Mas para que o desejariam? Não tinham igreja nem torre sineira onde pendurá-lo pudessem (tinham apenas sua fé); o que com ele fariam? Fundir-no-iam para com o bronze ficar? Mas de coisas mais ricas de sobra as tinha a cidade, quantas eram peças e móveis preciosos que em Ohrn abundavam! Todas valiosas e mais fáceis de as levarem? Bem, antes assim. Uma guarda noturna formada foi por velhos e desajeitados criados para patrulharem as ruas da cidade e o alarme soarem se os seres crepusculares voltassem, enquanto melhor solução não se achasse para a ausência das torres guardiãs. Mas como seria dado o alarme, se o sino roubado fora? Espantaram-se novamente os burgueses de Ohrn; seria o fato uma esperteza dos tais seres? Sem torres que os guardassem ou sino que os alertassem como ficariam, obesos por demais que eram e muito pouco afeitos às práticas guerreiras, militares?

Tomaram outras providências então; um mensageiro despachado foi e dias depois, célere, voltou trazendo consigo os Cavaleiros Templófagos, negros em suas pesadas armaduras de couro e aço, suas faces ocultas por bicos de metal perfurado. Um círculo formaram na praça com os seus corcéis e imóveis esperaram o que havia de vir.

Adiantou-se então um burguês, o mais venerável da cidade, e com tremelicante voz contou-lhes que haviam, que horror, perdido as torres do burgo, suas ancestrais protetoras e o sino da Matriz, que do perigo os alertava. Quem ou o que os defenderia então dos seres crepusculares logo após o paredão? Por acaso os cavaleiros e a que preço, não tomariam para si a missão deste pequeno e pobre burgo defenderem? E qual seria sua comissão?

Fez-se então o silêncio em primeiro; depois, o mais alto dos Templófagos falou que sim, que para defenderem seu burgo tinham vindo, para os protegerem dos miseráveis estavam ali, que tal tarefa poderiam fazer.

- Não queremos vosso ouro disse, sempre a pelejar, dele não aproveitaríamos um grama sequer. Mas ao invés do ouro queremos o poder sobre Ohren e como garantia, o casamento com vossas virgens; tornando vossas filhas nossas damas, uma nova aliança estabeleceremos convosco e um forte vínculo com vossas famílias.

Retiraram-se então os burgueses para a Matriz e fechadas as portas confabularam; “e nossos acordos, nossas promessas, nossos negócios comerciais, selados pela união de nossos filhos, como ficarão? Nossas famílias, como receberão os Templófagos, nossos devires, como serão?” - ponderavam. Uma sábia voz então se alevantou dizendo em alto e bom som:

- “Ó tolos, sabemos que tal tropa avançará em nossos cofres, além de levarem nossas filhas; mas que escolha teremos nós? Por acaso preferis que o povo crepuscular as leve para suas cabanas ou para forcejar nos campos”?

- “Tem razão o sábio” disseram, “melhor entregarmos nossas filhas e nosso ouro para cavaleiros do que para o povaréu, o sábio tem razão”. Combinado o que havia de ser feito, saíram os burgueses para a praça e com os Templófagos selaram a nova aliança.

Com o passar dos anos, as palavras que o sábio dissera foram se confirmando; os cavaleiros altos impostos impuseram sobre as famílias de Ohrn, casaram-se com grande pompa com suas filhas, embebedavam-se e comiam até estourarem em banquetes descomunais, tornaram-se gordos e lentos, mal cabendo nas armaduras faiscantes e limitaram seus deveres militares a uma cavalgada vagarosa em torno das muralhas do burgo, a cada seis ou sete dias, para afastarem os famintos seres dos portões da cidade. Os filhos por aqueles gerados eram cuidados por mães maldizentes de seu destino, que lhes impusera no caminho da vida, homens fedorentos que não sabiam sequer comerciar na praça. Em Ohrn começava-se a conspirar, os jovens burgueses que sem esposas ficaram, por conta dos acontecimentos, fundaram e reuniam-se em uma sociedade secreta estranhamente denominada de “O Sino”, onde tramavam a expulsão dos Templófagos.

Afinal, em outra gélida noite de inverno, com a cumplicidade das esposas que lhes franquearam as portas, sorrateiramente os conspiradores entraram em seus lares e apunhalaram os maridos-cavaleiros, durante o seu sono profundo de bêbados saciados, apaziguados. Deixaram então as mulheres a cuidarem dos cadáveres e a lavarem o sangue dos pavimentos e dirigiram-se a praça de Ohren, onde fizeram uma imensa fogueira. Pouco a pouco os burgueses saindo foram de seus palacetes, dirigindo-se para praça, onde brindaram e dançaram pela morte de seus genros; os rapazes também dançavam faziam troças e desafios, “agora sim”, diziam “teremos viúvas como esposas, a vida gozaremos segundo as leis de Deus e dos homens”.

Repentinamente, alguém ouviu um som; outro também. Cessaram as festas e danças, nos cantos da praça apuraram-se os ouvidos e suspendeu-se a respiração. Não havia dúvida, era o sino de Ohrn que soava na escuridão.

São Paulo, Abril de 2007