No que diz respeito à minha geração de arquitetos, bem cedo descobrimos que a arquitetura não mudaria o mundo, que a estrutura econômica vigente não permitiria a justa e definitiva solução da questão da "habitação social", tão sonhada pelos modernistas “heróicos”. Em seu livro “O Urbanismo”, Françoise Choay comenta a posição de Friedrich Engels sobre o assunto: [...
”Engels recusa, portanto, os modelos socialistas utópicos, cujo pensamento compara, neste aspecto, aos dos capitalistas exploradores do proletariado. Além disso ele repele o método geral dos modelos, não por razões de facilidade, mas por desconfiança a respeito das construções a priori e porque se recusa radicalmente a separar a questão do alojamento do seu contexto econômico e político”...]¹. Neste sentido Engels não deixa de ter razão; no entanto mais de um século já se passou desde a publicação de “A Questão do Alojamento” e acho que não se justifica a atitude de cruzarmos os braços e ficarmos esperando eternamente por uma revolução proletária para resolver o problema da habitação social, deixando de lado as ações possíveis, baseadas na realidade deste momento da história. Certamente assim não estaremos mudando o mundo, mas trabalhando, pelo menos, para deixá-lo um pouco menos injusto.
No meu modo de ver, em primeiro lugar vem a questão fundiária, que cabe ao Estado dar uma solução baseada no interesse e na inclusão social. Há favelados que moram no mesmo lugar por cinco, dez, vinte, quarenta anos seguidos e não possuem título de posse da terra - tais situações tem de ser definitivamente regularizadas. No entanto, de maior importância ainda seria que os governos municipais cessassem com os atos selvagens de remoção de favelas a pedido de empresários do setor imobiliário ou demoradores dos bairros ditos "nobres".
No rol das ações possíveis, a autoconstrução financiada pelo Estado é uma solução para as classes de baixíssima renda, dispensando inclusive o projeto arquitetônico tradicional, ficando o papel do arquiteto voltado para a implantação correta das habitações e a um cuidadoso plano de parcelamento do solo, tendo em vista a necessidade da articulação das novas edificações com o tecido urbano existente, a criação de espaços públicos adequados, sua inserção no contexto da vizinhança, o respeito à paisagem e ao meio-ambiente, à segurança geológica, etc. Enfim, não se pode prescindir de um plano urbano abrangente, que não contemple apenas o uso do solo e um sistema viário mínimo.
Há anos nossas entidades de classe vêm batalhando por esta modalidade de planejamento e contra a exclusão física dos conjuntos habitacionais de interesse social da cidade real - mas infelizmente, nem estas entidades nem a classe dos arquitetos e urbanistas têm força política neste país. No atual governo, pelo menos, o ministério das cidades vem promovendo consultas à comunidade e grupos interessados para a elaboração de um Plano Nacional de Habitação, ação participativa esta que jamais ocorreu nos governos anteriores, quando a política habitacional era imposta de cima para baixo, com os resultados lamentáveis que estão aí, à vista de todos
Voltando à autoconstrução (em se supondo como resolvida a parte fundiária), acho que o financiamento do Estado poderia ser direto ao cidadão, sem uma incorporadora e/ou construtora como intermediária, encarecendo e burocratizando o processo. O dinheiro seria liberado em parcelas, na aquisição do material de construção e para o pagamento da mão de obra necessária. Tenho minhas reservas quanto ao uso habitual do mutirão, pois a construção civil ainda é a maior fonte de trabalho para o operário não especializado, ainda numeroso neste país, e o mutirão, embora socialmente solidário, não gera emprego². Assim sendo, um esquema de financiamento público que contemplasse a possibilidade de contratação direta da mão de obra pelo mutuário, estaria também contribuindo para resolver o problema de emprego em sua comunidade.
Em outras palavras, o futuro morador compraria, sem intermediários, o material de construção para a sua casa própria por meio de uma carta de crédito de um agente financeiro do Estado e contrataria um pedreiro e ajudantes da sua confiança para o serviço, com o dinheiro do financiamento e sem "gatos" no caminho. Fiscalização e apoio técnico ficariam a cargo das prefeituras, cujos funcionários seriam liberados de funções meramente burocráticas para realizarem um trabalho socialmente relevante.
Outro aspecto do sistema vigente de HIS que questiono é a obrigatoriedade do trabalhador se tornar proprietário do imóvel financiado pelo Estado. Por que não alugá-lo? Se o operário, ou o comerciário, precisam de mobilidade para conseguir emprego, para buscarem melhores condições de trabalho, por que, então, limitá-los pela propriedade física de um imóvel? Imaginem o problema de um cidadão que tem uma HIS e trabalha em Guarulhos, que é despedido do seu emprego e em seguida acha uma colocação para si em uma fábrica em Itapecerica da Serra. Certamente ele irá ficar em uma "sinuca de bico" ou decide vender a propriedade, pela qual ainda está pagando, na "bacia das almas", ou resolve atravessar diariamente esta metrópole engarrafada, ou ainda opta por esperar uma vaga mais perto do seu lar, ficando assim desempregado por um bom tempo.
Não seria mais razoável o Estado fazer uma carteira de interessados e construir (ou reformar) prédios com apartamentos - ou casas - para aluguel em vários bairros e em múltiplas cidades deste país? E o sistema ser concebido de tal forma que o inquilino depois de pagar 20 ou 25 anos de aluguel, se tornasse proprietário do último imóvel locado, o que provavelmente coincidiria com a sua aposentadoria? A mesma coisa aconteceria em caso de morte ou incapacitação do chefe da família, esta última se tornaria proprietária do imóvel ocupado - ou de outro dentro do sistema. Não parece mais adequado, mais lógico?
A origem disto tudo é que o antigo Sistema Nacional de Habitação foi fundado durante a ditadura militar e tinha o objetivo ideológico subliminar de transformar o proletariado em uma classe de pequenos proprietários, esperando-se com isso diminuir seu potencial "revolucionário". Hoje isto pode parecer ridículo, mas acreditem, era este o pensamento de políticos, militares e burocratas em geral há algumas décadas atrás. Então, acho mais razoável como política habitacional, mesclar-se a construção de imóveis para aluguel com imóveis para aquisição definitiva dentro de uma proporção adequada entre uns e outros.
Quanto a São Paulo, especificamente, a reforma e ocupação para uso habitacional dos imóveis vazios e frequentemente deteriorados do seu centro histórico, me parece ser uma solução urbana eficaz para o problema da habitação de interesse social. O comércio (inclusive o popular) é numeroso na região, que é acessível por duas linhas de metrô, trens da CPTM e corredores de ônibus que terminam em dois terminais urbanos de grande porte.
O acesso dos futuros moradores ao emprego e aos equipamentos urbanos de qualidade (escolas, bibliotecas, parques e praças,etc.) existentes no centro certamente elevaria a qualidade de vida da população lá residente.
A burguesia não voltaria para um centro revitalizado por sua ojeriza às demais classes sociais? Pois que fiquem em seus bairros macaqueados como parte de uma “global city” por aqui inexistente. Atualmente o centro tem a vocação urbanística de local ideal de moradia para as classes de menor renda, o Estado deveria aplicar, no caso, o capítulo da responsabilidade social da propriedade privada constante em nossa Constituição para desapropriar as centenas de imóveis abandonados (do primeiro andar para cima, o térreo é sempre alugado para o comércio), para reformá-los e destiná-los às habitações de interesse social.
1- Marx e Engels andavam as turras (quase sempre)com Proudhon e seus discípulos socialistas, e nesta briga entrou a questão da habitação operária, que este último pretendia resolver de uma maneira "paternalista", segundo Choay.
2- A meu ver, o maior benefício do mutirão é político e não econômico; ele serve para demonstrar às comunidades o que eles podem realizar ou conquistar, quando unidos em torno de um objetivo comum.