Olhei o relógio: meia noite. Anita, ao meu lado, bocejava sobre um copo de gim. Estávamos no balcão da boate, um precário mezanino de madeira debruçado sobre o salão. Na penumbra lá em baixo, casais dançavam enlaçados, embalados por um pianista aborrecido e sonolento; cá em cima, na meia-luz, um sussurro constante elevava-se das mesas. Seus ocupantes habituais chamavam o lugar de Sanatório, pois aqui se curavam de suas dores comuns: dor de cotovelo, dor de corno, dores do corpo, dores da alma.
- Tem um cigarro? – uma loura alta, visivelmente bêbada, oscilava diante de mim com um sorriso contrafeito. Olhei para o lado, Anita adormecera em meio aos copos.
- Vamos dançar, - disse eu. Ela assentiu e seguiu adiante, bamboleando entre as pernas estendidas à sua passagem. Na escadinha, seus sapatos rangeram de leve e quando pararam estávamos rodando na pista.
-...
Oh the old streets of Nantucket... – A minha parceira dançava bem, como se estivesse sóbria, mas parecia não se dar conta de mim, com o queixo fincado
no meu ombro.
-...
I wish she would... - Olhei as mesas ao redor com curiosidade, aqui em baixo (na planície, como dizíamos,) eu me sentia sempre como um estrangeiro, meu território era o jirau acima. Não reconhecia nenhuma das faces que passavam por perto; no balcão os freqüentadores me eram pelo menos familiares, talvez por ouvi-los contar todas as noites as mesmas mazelas. Rodávamos. Uma grande lua de acrílico nascia atrás do palco. A balaustrada superior girava, girava...
-...
So long a time... -...
I wish... - Um homem acendeu seu isqueiro ao meu lado e, por alguns segundos, pude ver o rosto do meu par; era extraordinariamente belo e assim emoldurado por cachos dourados, assemelhava-se ao de um anjo de afresco. Impressionou-me. Pensei em dizer-lhe alguma coisa, qualquer coisa, mas nada que valesse a pena me veio à cabeça. Procurei em volta algo para mostrar-lhe e que pudesse interessá-la; porém o que poderia eu achar de interessante numa boate escura? Só vultos a rodar, cadeiras, corpos, copos. Por fim encontrei uma mesa ruidosa, onde se sobressaia um obeso senhor de olhos arregalados, com sua gordura espremida em um summer reluzente. O curioso era ser ele o único do grupo a vestir-se de branco, seus companheiros de esbórnia trajavam-se todos de negro. Apontei-o para a minha dama, fazendo uma observação despretensiosa qualquer. Ela parou de dançar e olhou-o demoradamente (inclinara atenciosamente a cabeça enquanto eu falava); evidentemente atinha-se a algum detalhe. O pianista cessara de tocar e a música do toca-fitas soava muito alta, tornando burlescos os gestos do homem, sem o discurso que deveria acompanhá-los. Mas ela demorava-se demais a fitá-lo, puxei-a novamente para mim e recomecei a dançar.
- Ele veio aqui para morrer.
Fitei-a intrigado – O que... Quem?
- O homem que você me mostrou. Ele veio aqui para morrer.
Diante do meu espanto ela fincou novamente o queixo no meu ombro e
continuou a olhar inocente e esquecidamente sobre ele.
-...
So long a time... – (voltara o pianista ao seu instrumento). Deixei-a junto a uma mesa de pista (para pedir um cigarro, ainda queria fumar) e dirigi-me para a escada do Sanatório. No caminho passei pela mesa do futuro defunto; ele falava sem parar, revirava os olhos, ria, todos a sua volta soltavam ruidosas gargalhadas. Evidentemente era uma figura bastante divertida.
Ao chegar ao balcão, encontrei Anita dormindo como uma criança; sua cabeça resvalara da mesa para o banco e neste ela se aninhara, encolhendo-se de frio. Cobri-a com o meu paletó, sentei-me no chão, ao seu lado, e ali fiquei a distrair-me, brincando com os seus cabelos, O pianista continuava a solar, em sua modorra de fim de noite.
- Têm um cigarro? – Olhei para cima, era o anjo de novo. Desta vez dei-lhe o cigarro e convidei-a para irmos até o bar. Descemos outra vez para a planície e caminhamos até a antiga bancada de granito e madeira que se constituía no
american-bar do Berghof. Sentamo-nos nas banquetas de couro e a bela pediu um
dry- martini enquanto que eu ia de uísque duplo com gelo.
- E aí, menina, está se divertindo aqui na casa?
Ela sorriu vagamente e fez que não com a cabeça.
- Me diga uma coisa; você falou mesmo, lá atrás, que aquele sujeito de summer veio aqui para morrer, ou já estou meio de porre e imaginei ouvir isto?
- Ele veio aqui para morrer esta noite. Por isto convidou tantos amigos.
Desta vez fiquei francamente estupefato enquanto ela olhava apática, as garrafas nas prateleiras do bar.
- Mas como você pode... como pode saber disto, que ele irá morrer hoje?
- Porque sou sua esposa; ele vai suicidar-se daqui a pouco.
Eu a fitava literalmente de queixo caído; ela falava com tanta segurança que aquilo tudo não podia ser uma simples conseqüência da bebedeira.
- Você é casada com ele? E como... você não deveria estar ao seu lado?
- O Pimenta foi muito bom comigo... não quero vê-lo morrer. É isto. Mas estou apenas um pouco tonta...
- Pimenta? Ele chama-se Pimenta?
- Pedro Pimenta. Vivíamos no Paraguai... ele tinha negócios com exportação de café, por lá.
- Mas o que aconteceu? Por que...
- Ele adoeceu no mês passado, diagnosticaram um tumor no cérebro. Inoperável. E assim...
Olhei para o grupo do Pimenta, a tertúlia continuava como antes.
- Você está mesmo falando sério? Seus companheiros sabem o que vai acontecer?
- Pedro os convidou para uma despedida. Todos sabem que...
- E como ele irá... se matar?
- Com veneno de cascavel. Trouxe com ele do Paraguai.
Eu estava abismado; esta estória alucinada com uma loura bela e misteriosa no enredo, venenos de serpentes, farras, suicídios e tudo o mais... Era o bastante para um final de noite, resolvi embriagar-me.
- Chefe! Mais um duplo aqui! Quer mais um Martini?
- Nossos amigos o chamam de Pedro Coração de Pimenta, mas comigo ele sempre foi tão gentil... Se não fosse...
- Ô chefe! Traz um Martini também! E... à que horas se dará o... o passamento?
Ela não precisou responder. Um pequeno tumulto se instaurara na planície, o Pimenta havia caído sobre as garrafas e a mesa, os homens de negro agitavam-se ao seu redor, algumas mulheres davam gritinhos agudos.
- Calma pessoal! – Falou um dos seus acompanhantes - O nosso amigo aqui bebeu um pouco demais, vamos levá-lo para casa. Vamos indo, gente...
Saíram rápidos com o corpo, o meu anjo levantou-se da banqueta:
-Tenho de ir a um funeral - Sua voz arrastada tinha uma ponta de tristeza.
- Mas espere, você vai sair assim? – Eu a havia segurado pelo braço, mas logo a soltei, dando-me conta da inconveniência da minha atitude. Hesitei um pouco e então a beijei carinhosamente nas pálpebras perguntando pelo seu nome.
- Clawdia – ela me disse – com W. Tchau, amor.
Depois de vê-la desaparecer em meio ao lusco fusco esfumaçado da planície,
voltei ao meu jirau, e lá estava a Anita desperta, debruçada na balaustrada.
- O que aconteceu lá em baixo? – perguntou-me ela.
- Um homem desmaiou, ou bebeu de mais, sei lá. Ou envenenou-se, quem sabe, na planície é assim mesmo, Anita.