Tenho por mim que não foi apenas a coesão urbana de cidade européia e sua escala agradável ao homem que a cidade perdeu nesta época; os especuladores destruíram sua maravilhosa paisagem natural, construindo nas encostas mamutes de concreto e aço, alteraram sua tipologia para pior, destruíram as suas antigas qualidades ambientais, paisagísticas e urbanísticas ao ponto de modificarem suas práticas sociais e ritos locais. O arquiteto e crítico Hugo Segawa retratou bem este tipo de perda com belas palavras:
“Não há perda mais dolorosa que o fenecimento da memória do lugar (não dói como o pré-infarto, é uma dor extremamente refinada). Não é a toa que existem acordos internacionais salvaguardando sítios significativos em caso de guerra (embora de duvidosa eficácia), porquanto uma das principais estratégias de dominação era o apagamento das referências urbanas das populações subjugadas, destruindo relações e ritos sociais consagrados. O processo de substituição das superfícies habitáveis em nossas cidades maiores é tão devastador quanto um conflito bélico”.
Quando os primeiros efeitos desta nova legislação se fizeram sentir, eu já cursava a FAU, na ilha do Fundão e ali vários professores defendiam as novas normas dizendo que, agora sim!, teríamos prédios com quatro fachadas “como em São Paulo” e os edifícios teriam “volume”, o qual, de resto, resultava dos pífios recuos previstos pela lei e não da concepção do arquiteto. Como conseqüência desta política urbana, que veio na esteira da ideologia neoliberal de mercado (o espaço é uma mercadoria a ser vendida [sic] e como tal deve ser desenhado), podemos observar, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo (onde moro desde 1971), quarteirões e quarteirões junto às vias públicas, que mais se assemelham as prateleiras de supermercados, com sua sucessão de prédios extravagantes como que procurando atrair a atenção dos passantes sobre si. Cito aqui um trecho de uma entrevista do colega Luis Espallargas Gimenez que bem resume a situação hoje reinante.
“Vejo, naquela que é publicada (a produção arquitetônica brasileira contemporânea), uma certa predominância da arquitetura de marketing, uma arquitetura de impacto feita para pessoas de limitado refinamento formal, que só podem ser despertadas para o projeto se ele for provocativo, pirotécnico. O que predomina é o culto à aparência, à monumentalidade”.
Na verdade, a aliança entre a globalização e a especulação imobiliária já se realizara em terras brasileiras desde o final do século XIX, como podemos ver neste artigo da revista Domus sobre artesãos e construtores italianos que migraram para a América naquela época: “Observando-se o trabalho destes designers e artífices, nota-se que ele reflete o avanço do ecletismo, que se tornaria o estilo de eleição da burguesia cosmopolita e que era, em vários aspectos, um precursor da cultura global de hoje. Em sua recriação anti-histórica de estilos antigos, o ecletismo ignorava diferenças geográficas e coerência lingüística; em vez destas, ele oferecia um conjunto pragmático de regras facilmente adaptáveis para a criação de um certo ambiente para a classe média e suas instituições”. Hoje os incorporadores tupiniquins trazem também um ecletismo "post-modern", de uso imediato, para a nova burguesia brasileira. Os colonizados (nós) trocam mais uma vez sua cultura própria por modelos estrangeiros, (modelos estes no mau sentido da palavra fashion), tal e qual nossos antepassados indígenas trocaram seus tesouros por miçangas e quinquilharias com seus conquistadores. Quanto “lixo ocidental” tem sido assim espalhado por nossas cidades!
Mas creio que me adiantei no tempo, volto a minha época de estudante. Nos anos sessenta e no começo de minha vida profissional, na década seguinte, ainda lutávamos duramente (principalmente em São Paulo) para implantar o projeto modernista, tendo como barreiras, bobagens do tipo arquitetura “neocolonial”, “neoclássica”, “mediterrânea”, “o-vento-levou”, etc. O Sergio Pileggi, meu sócio por duas décadas, contava-me que, em seu tempo de FAU-Mackenzie, os alunos precisavam reivindicar “aulas de arquitetura moderna”, pois o ensino do neoclassicismo imperava pelas mãos de seu diretor Christiano Stockler das Neves. E de repente, em plena luta nossa por uma linguagem arquitetônica contemporânea, começaram a chegar de fora os livros de Charles Jencks, Peter Blake, as revistas americanas com os projetos populistas de Venturi, Charles Moore & CIA – no início não me dei conta do substrato ideológico (o de livre-mercado) que eles traziam, acreditava ser apenas mais uma manifestação de mau-gosto dos “hermanos” do norte – e o anuncio da morte da modernidade.
Lembro-me bem de uma frase de Bernard Huet ex-editor da L’Architecture d’Aujourd’Hui em que ele profetizava que a “arquitetura tal como a conhecemos teve um começo e, portanto terá um fim” e eu pensava pô, só sei fazer isto, vou sobreviver do quê? E na década seguinte, com a chegada triunfal do deconstrutivismo e com o Peter Einseman dando concorridas palestras por aqui, eu de novo não podia deixar de pensar – temos pela frente tantas habitações, escolas, postos de saúde por construir, favelas por reorganizar e ainda precisamos ficar discutindo “deslocamentos, estilhaçamentos e fragmentações” tão distantes de nossa realidade de país periférico!
Víamos então artistas do tipo pop-star migrarem do rock e do cinema para as artes plásticas (Andy Walholl, por exemplo), para a escultura (Cezàr) e para a arquitetura (Graves, Nouvel, Koolhas e tantos outros), cujas vidas passaram a ser tão importantes quanto a obra, fenômenos gerados em série pela mídia capitalista, muitas vezes sem o correspondente valor histórico ou artístico. Estávamos acostumados a arquitetos como Le Corbusier, Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto, Louis Khan, que adaptavam seus projetos aos locais aonde os construíam; em seu lugar apareciam profissionais como Richard Meyer que projetou seu Museu de Arte Moderna da Catalunha, em pleno bairro gótico de Barcelona, como se o fizesse nos gramados de New Jersey, EUA, e Frank Ghery com seu Gugenheim de Bilbao, como se o mesmo fosse situado na Disneylândia, tudo meio na base de que “não se mexe em time que está ganhando”.
Apesar disto tudo e mais os “anos de chumbo” (que, afinal, passaram) ainda sobreviviam entre a facção sadia dos que ainda exerciam a profissão, o comprometimento social e o humanismo herdados do racionalismo europeu, da Nova Capital sonhada por Lucio Costa e Oscar Niemeyer, da obra de Affonso Reidy no Rio de Janeiro e de Vilanova Artigas em São Paulo. Quanto a este legado modernista permito-me citar um artigo do arquiteto Giancarlo De Carlo – que, inclusive, se contrapunha aos CIAM e a Carta de Atenas do nosso Le Corbusier –, membro do “Team X” e falecido recentemente:
“É geralmente sabido que a arquitetura moderna começou com um profundo engajamento político e social e que muitos poucos traços deste clima persistem hoje. [...] Todos eles (os arquitetos modernistas) sentiam que a solução para tal problema (a habitação popular) seria uma maneira de mudar o mundo; se todos pudessem morar em habitações de baixo custo, higiênicas, confortáveis e sabiamente desenhadas, a sociedade encontraria um equilíbrio mais estável, melhor relacionado com a liberdade e a justiça. E assim, o mundo seria um lugar diferente. Esta é uma premissa falsa ou verdadeira? Bem, poderíamos discutir sobre isto por muito tempo e chegarmos a quaisquer tipos de conclusões. Mais uma coisa é certa; que os arquitetos do período ‘heróico’ acreditavam nesta equação simples. E que, iluminados por esta fé, produziram um grande número de obras admiráveis. [...] Vejam vocês, eu sou de uma geração posterior, mas cresci nesta atmosfera. Meu interesse era dirigido para a arquitetura, mas ao mesmo tempo eu a pensava como um campo de empreendimentos onde eu poderia agir sobre causas materiais que pudessem ajudar a melhorar o mundo”.
A ligação do fazer arquitetônico com o meio ambiente continuou em queda aqui e alhures; não me custa relembrar, desta época, a polêmica entre Peter Einseman e Vittorio Gregotti sobre fundamentos arquitetônicos e econômicos. O primeiro, em entrevista concedida a Günther Uhlig, afirmou que o fenômeno da globalização acabaria com a substância, “sostança”, local ou regional da arquitetura. A resposta de Gregotti foi dura: “O erro em que Einseman cai [...] é acreditar que a informação capitalista e a unificação dos mercados possam ser consideradas como parte genuína da substância da arquitetura. Ao contrário, elas são apenas um agente colonizador, como o era a ideologia Jesuítica para a América do Sul no século XVII” (10). A globalização da cultura e a unificação dos mercados é one way, e fica evidente o canibalismo a elas implícito, com o american way of life devorando nossos corações, bolsos e mentes. Somos hoje, praticamente, o Brasil Colônia dos EUA como já o fomos da Inglaterra, de Espanha e Portugal. Quando no século XVIII e no início do XIX, começamos a desenvolver uma arquitetura mais adaptada ao nosso contexto, com o Barroco Mineiro, lá veio com a Corte de D. João VI, o Grandjean de Montigny e o seu neoclassicismo e, logo após, o já mencionado ecletismo fin de siècle. Já no século XX, após um breve proto-modernismo internacional e um neo-colonialismo equivocado, chegou-nos o purismo europeu pelas mãos de Warchavchik e Le Corbusier, o qual, reinterpretado por nossos modernistas históricos e com o auxílio da recessão cultural externa causada pela guerra na Europa, adaptou-se naturalmente ao nosso meio ambiente, formando, assim, uma nova escola genuinamente brasileira. Com o fim das hostilidades e a recuperação da economia ocidental, recomeçou, como já vimos, a ciranda da invasão cultural e hoje, enquanto lutamos, literalmente, para pormos diariamente o pão na mesa , vivemos o paradoxo de não termos trabalho em um país onde ainda faltam milhares de habitações, escolas e hospitais a serem construídos.
Para reforçar este tema, transcrevo outro texto de dez anos atrás, este de Milton Glaser (designer, na época presidente do IDCA – International Design Conference in Aspen) sobre a então situação das artes, em geral:
“A primazia da oportunidade individual e da eficiência capitalista substituiu os ventos moderadamente socialistas do movimento moderno. Os objetivos metafísicos e os ideais de responsabilidade cívica foram para os porões ou varridos pelo vento. As pressões da prática profissional e a necessidade de ganhar-se a vida deixaram pouco espaço para a pesquisa teórica do meio social. Apesar de tudo, o sentimento que as artes em geral e o design, em particular, poderiam melhorar a condição humana persistia e iluminava a profissão. [...] A capacidade do capitalismo sem controle em disseminar um sentimento de injustiça e a luta de classes cresceu dramaticamente e a maioria de nós foi afetada por ela; podemos, assim, estar enfrentando o problema mais significativo de Design de nossas vidas. [...] Colocando de outra maneira, como criar uma nova narrativa para o nosso trabalho que restaure seu núcleo moral, crie um novo sentido de comunidade e restabeleça a continuidade do humanismo generoso que trazemos em nossa herança? A guerra acabou. É tempo de começarmos de novo”.
Certamente ao sul do equador a guerra nunca acabou, mas e se acabasse? Findo o neoliberalismo, o campo de batalha sobraria para nós, arquitetos. Herdaríamos cidades infectadas pela “arquitetura de marketing”, pelos horrores dos condomínios fechados dos ricos e as sub-habitações dos pobres, os cortiços e as favelas. Além de ter liquidado com a ética, a globalização cultural nos deixará uma estética do fake, do kitsch (12), do envelhecimento precoce, do espaço público tratado como coisa particular a ser comercializada, a paisagem urbana e o meio ambiente destroçados. Como Franz Kafka dizia, “existe a esperança, mas não para nós”.
Mas para não terminar o meu artigo de forma tão negativa, sigo com uma analogia entre arquitetura e música, com foco na relação entre o artista e a sociedade, nesta reflexão de Theodor Adorno:
“O aparecimento de uma burguesia numerosa e ávida de distrações foi uma das causas do caráter superficial de muita música escrita depois de Bach. Os compositores tiveram de transformarem-se em agentes do mercado, cujos desejos penetravam em suas obras de modo a atingir-lhes o próprio cerne. [...] Mas não é menos verdade que, em virtude justamente desta interpenetração, a necessidade de distração transformou-se em necessidade de variedades no interior do objeto composto, da própria composição, isto por oposição ao desenvolvimento unitário e relativamente contínuo do barroco. Ora, esta preocupação com a alternância no interior de uma mesma peça tornou-se o fundamento da relação dinâmica entre unidade e diversidade, que nada mais é que a lei do classicismo vienense. Esta relação dinâmica foi, para a composição, um progresso imanente que, duas gerações depois, compensaram as perdas que, inicialmente, a mudança de estilo havia acarretado (têm-se aí exemplos patentes, tanto de ações exercidas pela sociedade sobre a música, como da maneira pela qual um artista pode fazer progredir sua arte, voltando contra esta as armas com que ela o ameaça)”
Será (me pergunto) que as próximas gerações de arquitetos brasileiros conseguirão transformar esta tragédia ética e estética atual em uma nova e legítima forma de expressão arquitetônica, fundada em nossa própria cultura?
2 Comments:
olha esse texto é bom mas meio grande, por favor diminuir um pouco
abraço
arq. koni
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PALLADIO, at 5:52 da tarde
Euclides,
Gostei muito. Parabéns.
Abraços,
Gillus Boccattus
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Gillus Boccatus, at 5:28 da tarde
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